sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Projeto Tiras - 1979

Em 1979, a editora Abril, por meio de alguns funcionários visionários e amantes dos quadrinhos, lançou um projeto de distribuição de tiras de jornal que deveria funcionar nos moldes dos syndicates norte-americanos, o Projeto Tiras. Era composto primeiramente por trabalhos de desenhistas e roteiristas ligados à própria editora, mas, num segundo momento, pretendia abrir o leque e fornecer tiras de outros autores.

Capitaneado por Ruy Perotti e Wagner Augusto a ação durou apenas alguns meses devido a vários problemas externos e internos, inclusive à não compreensão do produto por setores da própria editora.

Zé Pessimista por Izomar.

A seguir podemos ler a carta de apresentação do Projeto assinada por Victor Civita, fundador da Abril:

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"Caro Editor:

Finalmente, um passo muito importante vai ser dado agora para preencher uma das mais sentidas lacunas do panorama cultural e artístico brasileiro. Falo do PROJETO TIRAS, que visa à promoção e distribuição, a jornais selecionados como os mais representativos do mercado, de histórias em quadrinhos com personagens e autores exclusivamente nacionais.

Todos os envolvidos no PROJETO TIRAS serão certamente beneficiados com ele:
  • os autores nacionais, que finalmente terão oportunidade de divulgar seus trabalhos - hoje, reconhecidamente, do melhor nível internacional; 
  • os jornais, que receberão permanentemente, e a baixo custo, um material editorial de alta qualidade e inegável interesse para seus leitores;
  • e os leitores, que poderão encontrar material tipicamente brasileiro, com que se identificarão mais profundamente.

O PROJETO TIRAS abrange duas modalidades:
  1. Publicação das histórias em quadrinhos sob a forma de tiras diárias, no corpo do jornal.
  2. Publicação de suplementos infanto-juvenis semanais.

Anexo à presente, encontrará nosso “portfolio", com amostras dos autores participantes, previamente selecionados pela Abril, com sua tradição de muitos anos em qualidade editorial e experiência específica em histórias em quadrinhos.

Confio em sua adesão a este projeto que, por suas características pioneiras, visa à valorização do autor nacional e à divulgação dos temas e costumes brasileiros. E contribuirá para destacar ainda mais seu jornal, acrescentando entretenimento de alta qualidade às demais características já tradicionais.
A seu inteiro dispor para quaisquer esclarecimentos adicionais, aproveito o ensejo para transmitir-lhe meus melhores cumprimentos.
Cordialmente
Victor Civita"

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Sujismundo por Ruy Perotti.

A ação foi anunciada na revista semanal Visão, de Henry Maksoud, concorrente de Veja. Curiosamente o semanário de Victor Civita não publicou sequer uma linha noticiando o projeto. Leiam a matéria a seguir:

"Mercado nacional para brasileiros

Nossos desenhistas sempre vociferaram contra o monopólio das histórias em quadrinhos mantido pelos “syndicates”, mas não podiam concorrer com eles. Agora, chegou a hora.

Nunca nenhum editor de jornal ousou dizer que não há mercado para as tiras de histórias em quadrinhos no Brasil: mesmo sabendo que os leitores riem amarelo com as graças estrangeiras, há sempre uma seção de humor na imprensa diária. Mas muita gente insistia em dizer que não dava para publicar autores brasileiros. Até que Maurício de Sousa provou, individualmente, que a questão não era bem essa. Tratava-se de criar o que muita gente sabe fazer, mas, principalmente, de contar com um sistema de distribuição eficiente, o que ele encontrou na Empresa Folha da Manhã, cujo carro-chefe editorial é a Folha de S. Paulo. Faltava, entretanto, montar um projeto que permitisse a presença não de um, mas do maior número possível de autores no mercado.

É o que faz a editora Abril, que estudou e detalhou seu "Projeto Tiras" durante os últimos seis meses, e o está lançando agora - já com contratos de fornecimento de tiras para dez jornais do interior de São Paulo e um de Fortaleza.

A idéia, trabalhada há dois anos, é de Ruy Perotti, criador do Sujismundo. Mas trata-se também de uma velha ambição da Editora Abril, interessada em "encontrar novos Maurícios de Sousa", para ampliar sua presença no mercado das revistas em quadrinhos, que hoje domina com a linha Disney e a Turma da Mônica.

Florisvaldo por Igayara.

A empresa chegou mesmo a editar uma revista-laboratório, Crás, com essa finalidade, em 1974. "Mas não deu certo", diz Perotti, "porque as revistas em quadrinhos começam nas tiras de jornais. Esse é também o histórico do Maurício. É preciso criar o personagem, testá-lo no dia-a-dia do leitor, marcar sua presença, firmá-lo. Só depois disso se pode pensar em lhe dar autonomia numa revista em quadrinhos." Por duas razões: uma é que os títulos estrangeiros já vêm com todo o merchandising pronto (filmes de cinema e de TV, brinquedos etc), "sendo impossível aos autores nacionais concorrer em igualdade de condições"; outra é que não se pode desprezar a lógica interna do produto, isto é, o início de personagens e autores nas páginas de jornais até chegar à revista e aos outros desdobramentos.

De grão em grão

Embora aparentemente óbvias, essas constatações são o produto de longa relação com o gênero - caso tanto de Ruy Perotti, diretor de arte, quanto de Wagner Augusto, editor do "Projeto Tiras", que destacam a importância cultural do projeto: criação de uma línguagem nacional de quadrinhos (já que a distribuição é para todo o país), no desenho como no texto, desenvolvimento de uma estética independente da implantada pelos modelos estrangeiros.

A verdade é que, mesmo com as atividades ainda incipientes, alguns resultados nesse sentido já podem ser verificados. Wagner destaca, por exemplo, o caso do personagem Florisvaldo (do paulista Igayara), que já vem sofrendo transformações no desenho - mais solto e mais simples do que no começo e o de Giba (da dupla Farias e Paiva), um negrinho favelado que vai ganhando em ironia, malandragem e causticidade.

O projeto, agora uma operação tiras, conta com doze personagens autenticamente brasileiros - do cangaceiro Carrapicho (de Avalone) ao favelado Giba, do indiozinho Tibica (de Canini) a Sujismundo, que passam a frequentar páginas de diários e semanários do país, com  base na estrutura de distribuição de publicações da Editora Abril.

Giba por Farias e Paiva.

De acordo com Perotti, o plano é que, “em seis meses, esse sistema mude totalmente o panorama da história em quadrinhos na imprensa nacional”. Se tudo der certo - e parece que vai dar, pois a aceitação das tiras brasileiras tem sido de 100% -, pode-se contar até com a expansão internacional do projeto, com a implantação do syndicate Abril. As etapas a serem vencidas são: atingir cinquenta jornais até fim de março, na fase de teste de receptividade dos personagens; lançar suplementos semanais com os personagens mais fortes, a partir do segundo semestre; atingir duzentos jornais em dezembro, quando os autores deverão passar dos catorze iniciais a trinta. A partir de então passa-se à etapa editorial propriamente dita: lançamento dos personagens mais aceitos em revistas, sob a forma de uma "coleção nacional", que preparará autores e personagens para virarem títulos independentes, com periodicidade determinada, e, finalmente, para lançamento de produtos de atividade, tipo "destaque e brinque", de álbuns e de uma linha de merchandising.

O segredo do projeto está em uma distribuição eficiente e no preço baixo, que varia de 60 a 80 cruzeiros, no mesmo nível do material internacional, cujo custo vai de 3 a 5 dólares por unidade. Nessa fase, a empresa paga 40% do valor das tiras vendidas ao autor, custeando a produção, enquanto na fase de revistas o direito autoral será o usual: 5% sobre o valor da capa (para as tiras, autor é exclusivo da Abril; para as revistas, assina um contrato de preferência apenas). Por enquanto, jornais, autores e empresa parecem satisfeitos com os resultados. Maurício de Sousa, consolidado em sua posição, não deve temer a concorrência dos "novos Maurícios". Resta saber como reagirão as distribuidoras do material estrangeiro, já que os syndicates detêm ainda 90% do mercado brasileiro de histórias em quadrinhos. Serão eles, agora, a rir amarelo?
Visão, 5 de março de 1979"


Agradecimentos ao jornalista e editor Wagner Augusto pela cessão do material.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Flávio Colin - Entrevista - 1989

Entrevista publicada na revista paranaense Nicolau, em 1989.

Flávio Colin: a vida na ponta do lápis

O traçado perfeito. A pureza do preto e branco. Artista e profissional. Coração andarilho. Flávio Colin retorna à Curitiba. Desejo seu. Sorte nossa. O traço, a arte, a mágica.

Colin é muito provavelmente, o mais importante quadrinista brasileiro. Enquanto a maioria dos nossos autores alardeia sofisticadas "influências", ele não assume senão uma remota estima pelo claro/escuro de Milton Canif nos inícios de sua carreira, influência já amplamente superada. 

Seu desenho é inconfundível, visto em qualquer gibi do mundo: nada de "influências", só o tratamento firme e limpo das linhas, a composição elaborada e realista dos quadrinhos, sem a preguiça de desenhar fundo, que é uma das características do gibi produzido no Brasil.

Além das histórias e séries mencionadas na trevista, Colin produziu - já em Curitiba - vários trabalhos documentais importantes: Universidade dos Bairros, História de Curitiba em Quadrinhos, A Guerra dos Farrapos, para a L&PM e O Continente do Rio Grande, para a Ipiranga.

Hotel do Terror nº 01 - Ota Comix, 1994.

Colin é desses gnomos benfazejos em extinção: onde ele põe a mão, cria uma obra de arte. Desde as historinhas pseudo-terror até os épicos históricos. Não se fazem mais desses autores que curtem se afundar em pesquisas, em vez de produzir histórias "in­críveis, piradíssimas".

Esta entrevista, realizada durante uma reunião que objetivava reativar a revista Casa de Tolerância, contou com a participação de Key Imaguire Júnior, Edson José Cortiano, Cláudio Seto, Humberto Boguszewski e Luís Bellenda.

Nicolau: Pelo que eu senti agora, você tem uma certa influência do Milton Caniff. Então eu queria saber como é que você começou a curtir quadrinho e quem te influenciou.

Colin: Entre o Alex Raymond e o Milton Caniff, eu preferia o Caniff, porque ele era mais desenhista. Você olhava um quadrinho do Caniff e ele tinha três, quatro, planos, o que era difícil de encontrar num desenho do Raymond, que trabalhava muito em cima da figura humana. E o Caniff não, ele botava um chinesinho lá (no fundo) de um aeroporto daqueles e o Terry, em primeiro plano. E ele não usava meio tom, coisa que eu sempre achei um recurso, uma regra meio baixa. Acho que história em quadrinhos é preto e branco. Então, por aí, pode ser que eu tenha sofrido uma influência do Caniff maior que a dos outros. Eu quero contar um caso de quando eu entrei na Rio Gráfica. Eu não sabia desenhar nuvem, que é um troço difícil de fazer: há uma diferença entre nuvem e poeira; então você desenha ou uma ou outra, não pode confundir. Tinha um desenhista da Rio Gráfica, o Gutemberg Monteiro, que era o papa da época. Eu não gostava do desenho do Goott, porque ele, por sua vez, tinha uma influência exagerada de um outro cara (um desenhista famoso, cujo nome agora não me lembro), que era um copista, e eu não admito copismo. Mas eu não sabia fazer nuvem, e então ia safadamente na mesa dos outros desenhistas para ver.

HQ é preto e branco, influência de Milton Caniff

E o Goott tinha uma solução pra nuvem. Eu não usei a solução dele, mas aprendi com ele como fazer. Porque o diabo é o seguinte: nós somos todos autodidatas, então você aprende olhando. Você não aprende numa aula, com professor e técnica. Ainda mais lá por 1953, 1954: não dava pra ter professor de nada.

Nicolau: Que outras influências você apontaria na sua carreira?

Colin: A de um amigo argentino, que fugiu das peripécias do Perón. Veio um bando de argentinos pro Brasil, excelentes gráficos e artistas, que se piraram com a derrocada do Perón. Meu amigo era o Guillermo Ares. Ele não era um grande desenhista, brilhante, criativo, mas como tinha aquela escola argentina, sabia muito de técnica, e eu aprendi com ele também. Por exemplo, aprendi a fazer uma mão. O dese­nho dele era até feio. Posso mostrar uma enciclopédia que era feita na Rio Gráfica e tem os meus primeiros desenhos e também os do Guillermo Ares, onde dá pra ver que usei a técnica dele. Eu sou um fã do claro/es­curo, acho que na história em quadrinhos, usar o meio tom, a retícula é um recurso. Não quero xingar quem usa. Quando usa, está bem usado, mas pra mim é uma aberração, eu não uso. Uma coisa curiosa, todo mundo diz: você tem uma certa influên­cia do Milton Caniff, e eu digo: é possível, devido à admiração que eu tinha pela sua colocação em preto e branco... e depois, era uma aula de desenho.

Nicolau: Você tem o Anjo, o Vizunga, o Nicanor de agora. É isso? Ou tem outros personagens?
Vizunga, Folha de S. Paulo - 1965.

Colin: Sim, tem o Vigilante Rodoviário, que foi feito e o Jayme Cortez deixou morrer, porque é incompetente, besta. O Jayme Cortez tinha uma mina de ouro e deixou morrer por... não vou dizer incompe­tência, que o cara não merece isso, mas deixou aquilo avacalhar e perdeu a mina de ouro. Então tinha o Vigilante Rodoviário, que era uma série de televisão, e a respeito dele tem uma coisa curiosa: o Shimamoto, que eu considero o melhor quadrinho (é um cara que faz exatamente aquilo que eu acho que um desenhista de histórias em quadrinhos deve fazer: ele manda pras bananas a anatomia - não que ele fuja do negócio - mas ele deforma, ele constrói), chegou e disse: Colin, você faz aquele cachorro do Vigilante Rodoviário, eu não sei desenhar bicho e você faz isso bem. Realmente eu desenho, e eu gostava de desenhar o Vigilante por isso: tinha o cachorro, era interes­sante... mas infelizmente, como tudo nesse país...
Almanaque Vigilante Rodoviário, editora Outubro - 1964.

vale deformar, construir, não copiar anatomia

Nicolau: O Cortez e aquele outro argentino, o Zalla, vieram nessa corrente que você mencionou? 

Colin: Não, o Cortez é anterior ao Zalla. O Cortez, é português de Lisboa, é alfacinha - e é mais antigo que a Sé de Braga, é um artista muito antigo...

Nicolau: Era esse o adjetivo que você estava procurando: ele é português...

Colin: É, o Jayme era isso mesmo, era o que eu queria dizer. O Cortez é um cara meio maroto em relação aos outros profissionais; disso não há dúvida. Realmente, ele publica álbuns, e eu devo algumas promoções a meu respeito ao Cortez. Afinal, neste Brasil, foi o único que fez a porra dum álbum de ilustradores, depois mais ninguém. Então o português tem que ter um mérito e eu não posso lhe negar isso. De sorte que também não posso avacalhar com o cara: se eu caí na última página do álbum dele, não foi porque ele quis, foi porque eu mandei o material atrasado, essa é a verdade.
A Técnica do Desenho, editora Bentivegna, década de 1960.

Nicolau: Entrou o Vizunga lá, né?

Colin: Entrou o Vizunga, entrou o que eu tinha, e eu não tinha nada, eu nunca tenho nada, sou um desperuchado. O cara me pede um desenho e vai esperar quinze dias até eu fazer um? Então não foi culpa do Cortez, eu é que não tinha material pra dar pra ele, vamos deixar isso bem claro...

Nicolau: Esse que você está falando é o Mestres da Ilustração?

Colin: É, acho que é.

Nicolau: Ele tem três: o Mestres da Ilustração, a Técnica do Desenho e o Ma­nual do Ilustrador.

bom é quem investe nas H.Q. ao invés de numa fábrica 

Colin: Isso é dele, né? Para o Manual do Ilustrador eu ainda tinha alguma coisa pra dar pra ele, aquelas histórias de far-west que eu fazia e alguns personagens, mas para o outro..., aí eu já não tinha mais nada; mandei uns negócios de última hora, ele teve até que repetir a página, ampliar, fez uma mágica. O Cortez tinha a Editora Outubro, que naquela época pra nós significava mais ou menos o que seria a Grafipar, a salvação da lavoura, né? Mas acabou tudo em uísque e Rum Merino. Agora, o Zalla é recente; eu não o conheço pessoalmente, mas soube que ele herdou uma grana e como é um excelente desenhista, resolveu abrir uma editora, investiu o dinheiro dele nisso, e vai levando. Talvez esta seja a razão de eu até hoje trabalhar pra ele a preço de miséria: eu gosto do cara que poderia investir numa fábrica de desentortar banana, num negócio qualquer de open-market, mas jogou em cima das histórias em quadrinhos. Eu colaboro com ele até hoje, não pelo que ele paga, e sim pelo que representa. Mas é muito posterior ao Cortez, eu já tinha deixado de fazer o Anjo.

Nicolau: Quanto tempo durou o Anjo? 

Colin: Na minha mão, uns dois ou três anos.

O Anjo nº 20, editora Rio Gráfica - RGE.

Nicolau: Na tua mão como? A gente sempre associa o Anjo com você, tem mais alguém?

Colin: Depois o Kid (Juarez Odilon) fez, o Valmir Amaral continuou fazendo.

Nicolau: O Vizunga você já disse que durou pouco, também. O Vizunga ficou interessante por causa daquela história do Maurício de Sousa distribuir. Como foi isso, exatamente?

Colin: Foi o seguinte: depois do Anjo, eu fazia, em São Paulo, aquelas histórias de terror que, aliás, às vezes tinham textos ótimos. Um dia o Maurício chegou lá em casa e disse: Flávio, eu estou na Folha de São Paulo e quero lançar umas tiras lá; você não quer fazer uma? Nós vamos distribuir pro Brasil inteiro, vai ter royalties, Nessa voz de royalties, eu disse que fazia e bolei o Vizunga. Aí mandei quinze tiras pra ele levar ao jomal e ver se agradava. Fiquei na expectativa do resultado pra ver se o jornal comprava aquilo ou não. Só que recebo um telefonema dizendo: as tiras estão rodando, manda brasa. Pô, quinze tiras não é nada, a uma por dia, dá duas semanas. Aí me vi louco, pari aquele Vizunga de tudo quanto era jeito, sempre na expectativa de que aquele negócio rendesse royalties, viesse pra cá, pra Porto Alegre, Manaus, Belo Horizonte: royalties brasileiros... Mas não deu nada, o negócio ficou ali na Folha. O Maurício tirava a parte dele e me pagava o restante. E aquela era uma história que levava pesquisa, dava trabalho, porque eu fazia com um amor desgraçado; era a minha pai­xão. Era uma coisa que eu gostava, era didática. 

o Vizunga era a maneira de passar o pouco que sei 

Eu acho que na nossa história em qua­drinhos - e acho que vou morrer com essa mágoa -, a gente não pode passar nada do que está aí. A história em quadrinhos é um veículo espetacular pra você passar as coisas, mas nesse país não dá. Você imprime o óbvio: pornografia, erotismo, terror (um terror de merda, que não assusta ninguém), mas as coisas que a gente tem - folclore, fauna, cultura -, nada disso a gente consegue passar. Isso morre e a nossa história em quadrinhos fica sem esse conteúdo; sem essa mensagem. Fica aquele troço chato,seco, didático, quando a gente podia transformar nossas coisas numa tremenda história em quadrinhos. Não falta episódio, não falta nada. Isso me irrita, porra. E o Vizunga, eu ia usar pra passar História, eu ia usar pra passar tudo nele, através das caçadas. Ia botar o Vizunga tomando caldo com um índio, ia botar no tempo dos bandeirantes. O Vizunga era isso: a maneim que eu tinha de passar o pouco que eu sei. Mas nessa época eu fui pra McCann. Ganhei um concurso lá e os caras me chamaram. Eu ganhava mais fazendo story-board que história em quadrinhos, daí acabou o Vizunga.

Nicolau: Mas o Vizunga teve uma longa história...

Colin: Eu não sei se ele chegou a quatrocentas, mas a trezentas e tantas tiras chegou. Eu queria fazer um anti-herói, tanto que o Vizunga era um cara careca com uma barbicha, e minha intenção era contar uma históna, parasse onde parasse. Quem quiser suspense, que vá ler Fantasma e Mandrake. 

Quem entendeu onde parou o papo, compra outrra porque quer a continuação daquilo. Vou me preocupar com o suspense pra quê? É uma conversa, tanto que o Vizunga era dividido em duas características, em dois níveis: ele era acadêmico, quando explicava que estava na África, na Índia ou no Brasil (em que cidade, qual a população), e quando ele começava a contar a caçada ou a pesca­ria, a coisa virava cartum, uma sátira a caça­dor e pescador ("peguei um peixe deste ta­manho"; "matei um veado de quarenta chifres"). Era pra dar chance a "a pegada do elefante era do tamanho dessa sala" que era o que divertia.

deve-se informar nas H.Q., não se limitar a aventuras

Nicolau: Mas as informações que passava eram corretas?

Colin: Claro, a informação que ele dava era correta, porque eu comprei mapa da Índia, da África, do mundo inteiro. Aleghanis, nos Estados Unidos, Montanhas Ro­chosas, Punjab, o negócio era nessa base. Porque eu acho que isso é que é válido na história em quadrinhos: é você informar, não só fazer uma porra de uma aventura, ou um protesto. Você tem que informar, essa é a razão da história em quadrinhos. O americano nos encheu o saco de way of life pra ter essa porcaria. Antes da televisão e do cinema ele já estava mandando brasa em cima da gente: então você conhece todas as tribos americanas, todos os cow-boys da vida e não é através de cinema, é através de história em quadrinhos. E por que nós, que somos um país continental, não podemos fazer essa coisa? Vender chimarrão pro paraense e vender tucupi pro gaúcho? É isso que temos que fazer. Estamos nos desconhencendo, e não é jornal, é história em quadrinhos que faz isso, mesmo falando de África, de Índia, de Canadá. Mas o Vizunga era um cara milionário, que vivia na beira da praia, que tava contando a história dele pra uma platéia de jovens. Como era o Vizunga, nenhuma editora comprou. Não campraram nem o Carga Pesada, que era um negócio de televisão, mascado, pronto, feito: os caras mandaram capar. Então, como o Maurício deu tira, foi tira. Tira é um negócio engraçado, grave: pra quem gosta da fruta, tem que encarar. Não é o ideal, fazer tira. O ideal é fazer uma revista. O Vizunga era pra ser uma revista, tipo Anjo. Mas quem compra? A Folha compra tiras? Tiras... 

Universidade dos Bairros nº 02 - Fundação Cultural de Curitiba - 1985.

O ideal não é fazer tira. O ideal é fazer uma revista 

Nicolau: Você já falou numa porção de gente, mas quem você acha que são os melhores autores (brasileiros)?

Colin: Olha, vou dizer uma coisa: eu poderia citar muita gente, mas infelizmente eu separo o artista do profissional. Quando eu falo num artista, eu gosto que ele seja um profissional. Artista tem aos montes, profissionais é que são poucos. Artista profissional mesmo tem muito pouco no Brasil. Eu não quero ofender nem omitir ninguém. Não vou dizer que são os meus preferidos, mas são os que eu conheço. Tem aqui o meu amigo, o professor Seto, tem o Shimamoto...

Carga Pesada nº 03, no traço de Flávio Colin - RGE - 1980.

Nicolau:  Mas só tem japonês?!... 

Colin:  É, por enquanto estamos no Japão. O Shimamoto é uma máquina de fazer quadrinhos. E aquele menino que eu admiro muito, o Mozart Couto, um cara que tem um traço que está muito perdido nesse Brasil. Pra absorver o Mozart Couto, tinha que ter uma editora. Tem o Walmir, da Rio Gráfica, é o Kid, dos mais antigos. Dos novos tem muita gente boa: aqui o mestre Cortiano e esse pessoal. Mas da velha guarda mesmo, está lá o Walmir, o Shimamoto, ­os outros sumiram, porque é muito difícil, no Brasil. Eu poderia citar o Watson tam­bém, mas é um artista, não é um profis­sional. O profissional é o cara que realmente encara o trabalho que está fazendo. O Wat­son tem lá o traço dele, tirou não sei de quem, fez não sei o quê, é habilidoso, mas é aquele cara que fica lambendo uma história em quadrinhos, uma página, outra... Isso é muito bonito, dá um efeito magnífico, mas não é aquele sujeito... Então o difícil no quadrinho é isso, e estou citando esses camaradas de primeira hora. Poderia citar o Ziraldo, que fez o Pererê, e o Estevão, que era um profissional. E esse era bom: ele fazia aquilo na marreta, metia o cacete, era um cara! E sumiu, porque é aquela história: a gente não tem estrutura. Um Carlos Estevão na Europa... 

profissional é aquele que encara o trabalho que faz 

Nicolau: Essa geração do Nico Rosso, Colonnese, o Jayme Cortez, esse pessoal - bem, do Cortez você já falou -, o Edmundo Rodrigues, tudo isso chega a formar uma época no quadrinho brasileiro, né?

Colin: Realmente, formar, forma. Com perdão da má palavra, Edmundo Rodrigues forma uma... também faz parte do folclore, não vou dizer que não. Agora, infelizmente, nós somos uma geração perdida, porque com exceção da minha parte, talen­tos maravilhosos foram jogados pro espaço, por influência das multinacionais, dos copy­rights da vida. Nos sufocaram, e eu fico revoltado quando vejo esses caras. Veja o Nico Rosso, um homem antigo e está lá firme.

A gente tem que respeitar um cara desses, mas quem é Nico Rosso? Taí pra nós, que conhecemos o assunto, mas esse cara devia ser um expoente e não é. Porque nunca de­ram pro Nico Rosso o valor que ele tinha, nunca lhe deram o que fazer. Isso é um crime que se comete contra uma geração, contra uma inteligência. Além do fato de a gente ser miseravelmente autodidata, ainda por cima os desgraçados não nos imprimem. De repente, numa história, você nunca sabe o que fica pra você. É muito cômodo você ter um personagm, o Mandrake, por exemplo, é seu e você bota ele onde quiser. E nós, que ficamos desenhando texto dos outros? Um bola um negócio na idade Média, outro bola um troço na China... te vira, cabôco! E você tem que desenhar aquilo na China, porque tem um desgraçado dum leitor chato que diz: isso é no Japão, esse cara aqui não é chinês, é japonês. Você tem que pesquisar, porque o cara te sacaneia depois, não quer nem saber. Ser desenhisla de qua­drinho não é mole: você tem que ter referen­cias de Idade Média, de tudo. Eu, por exem­plo, desenhava o Sepé, lá no Rio Grande. Isso é importante, e a gente nunca fala. Pra mim foi muito importanle desenhar o Sepé pro Brizola.

Sepé nº 01 - CETPA - 1962.

para desenhar texto dos outros precisa se virar 

Nicolau: Mas como é isso, que a gente nunca ouviu falar? Todo mundo sabe como é a história do Sepé, mas você fez uma quadrinização disso?

Colin: Não, é o seguinte: o Zé Geraldo conseguiu chegar no Brizola e botar o problema do quadrinho na frente dele. Disse: olha, ninguém imprime, ninguém publica.... e o Brizola comprou a briga. Tinha aquele movimento do Jânio, formem aí como a Ordem dos Advogados... Mas o Jânio pediu o boné, tirou a escada e deixou todo mundo pcndurado na brocha. O Jango não ia comprar isso, que a cabeça dele era outra. Sobrou o Brizola. Então ele fez uma cooperativa no Rio Grande do Sul, chamava-se CETPA (Cooperativa Editora e de Trabalho de Porto Alegre), e lançou aigumas revistas, tudo com desenho e argumento brasileiros. Lançou o Aba Larga, que era aquela polícia montada do Rio Grande e quem fazia era o Getúlio Delphim, lançou o Saindenberg. Tinha umas quatro revistas, cujos nomes me fogem. E o Sepé, que era eu quem faria. Quem escrevia o Sepé era um professor de história lá do Rio Grande do Sul. O Sepé é um personagem folclórico. Em princípio foi revista, mas sabotaram, esconderam as revistas todas, tanto que eu tenho um numero só. Esconderam nas bancas, porque era um negócio de coo­perativa, de comunistas, então não dava. Meteram lá pra trás, escamotearam o troço... Depois só em tira num jornal de lá, não tomei conhecimento. Mas isso foi importante. Na época não fui pra lá porque era casado, e tinha família no Rio de Janeiro, mas o Shimamoto e o Getúlio, que eram solteiros,  foram. Fiquei mandando as tiras do Rio pra lá. Fui o único da patota que não foi para Porto Alegre. É mais fácil ir um cara só do que carregar a tralha. Eu recebia o texto do professor e fazia como a Grafipar: desenhava e mandava. E eu adorava aquele troço! Se bem que, claro, o cara, como professor de história - não que fosse verborrágico, mas ele queria passar alguma coisa. O Sepé fazia discursos do alto da coxilha e de repente não tinha espaço no quadrinho pra botar o Sepé... era tudo balão. Era um drama desgraçado pra botar a cara do Sepé a cavalo. Não cabia o Sepé, que dirá o cavalo... Porque o cara dava uma aula de justiça social lá naquela porra... Convencer o professor de que aquilo não era uma aula de história, era uma história em quadrinhos... Mas a coisa funcionou até que, infelizmente, veio a "Redentora" e acabou o papo.

Brizola comprou a briga e lançou H.Q. brasileiras

Nicolau: Só pra constar: o Shima diz que o Brizola alugou um andar pra turma, um ficava numa puta salona: o Shima numa, onde só tinha a prancheta dele, o Getúlio Delphim, numa outra... 

Colin: Mas era mesmo, era pra botar pra quebrar, porque aí é que está o interessante do negócio. Por isso que eu sou Brizola e votei nele - e, talvez tenha que transferir o meu titulo pra cá, se eu ficar em Curitiba (e gostaria muito de ficar, porque adoro Curitiba), se não eu volto pra lá e voto nele outra vez. Pelo seguinte, ele é um desinformado a respeito do assunto, mas quem não é? Pelo menos ele botou um salão: sei lá o que o cara precisa, eu não entendo, é melhor botar no salão que confinar no galinheiro, bota logo numa sala, sei lá o que o cara quer...

Nicolau: Essa história termina mais ou menos assim: dois anos atrás, na Grafipar, estávamos dando uma estudada nesse problema de cooperativa e encontramos uma nota num fanzine do Rio Grande do Sul, a Historieta, o cara metendo a boca no Brizola porque ele proibiu a entrada de Batman e Super-homem naquele Estado, naquele período. Bem feito que foi expulso do país, um troço mais ou menos assim. Como a gente que trabalhava na Grafipar conhece o funcionamento do mercado das dis­tribuidoras, fica fácil saber que se o Brizola não deixava entrar quadrinho da Ebal, da Abril, da Rio Gráfica no Rio Grande do Sul, está na cara que os quadrinhos dessa cooperativa não iam entrar nunca no resto do Brasil, que existe uma máfia aí.

Colin: Isso que o Seto falou agora foi a razão do fracasso. Isso eu aceito, é uma explicação inteligente. Não como aquele cara que tem lá no Rio Grande do Sul, aquele alemão que faz aquela revista (Historieta), o (Oscar) Kern. Porra, um dia eu recebo uma revista do Kern sacaneando o Sepé. Eu li aquele troço e escrevi uma carta pra ele esculhambando: Olhaqui, rapaz, eu fiz o Sepé com muito orgulho, porque de repente peguei um troço brasileiro pra fazer. Fiz com muito orgulho e lamento que o esquema e o status tenham acabado com a cooperativa. Uma carreira perdida. Aí ele mandou: Carreira perdida por quê? Não entendi! Carreira perdida porque você não pode combater o distribuidor, a multinacional, aquilo que o Seto falou muito bem, no raio das bancas. Não há força pra isso. Agora, daí menosprezar o trabalho como o Kern estava querendo fazer... Depois ainda andou publicando lá: Colin diz que fez o Sepé com 'muito orgulho', botou o muito orgulho entre aspas. Não sei porque entre aspas, eu falei no duro mesmo, não tinha nada entre aspas. Fiz porque o negócio era mesmo bacana. Aí, não vão me interpretar mal, fiquei chateado com o alemão, que vá tomar banho. Quis reeditar o Vizunga, eu disse: Vá editar o Vizunga na Baviera.

Nicolau: Acho que se devia colocar isso cronologicamente. Na verdade, o Colin falou em quinze anos de quadrinhos, e tudo misturado. Podia dar umas referências aí pra gente se situar.

Enciclopédia em Quadrinhos nº 5, RGE - 1956.

Colin: Primeiro, eu fiz a Enciclopédia em Quadrinhos. Daí me ofereceram pra fazer o Anjo. Então parti pras histórias do Jayme Cortez na Editora Outubro, em São Paulo, eram as histórias de terror. O Anjo foi de 1958, 1959, até sessenta e poucos. Daí já misturei com São Paulo, com a Editora Outubro, onde eu fiz terror e o Vigilante Rodoviário. Mas tem um lance antes: era uma revista de um cara chamado Ilo Iloy Lundi; sobre os pracinhas da FEB. Era da época do Anjo, um pouco antes. Eram histó­rias de sargentos e tenentes, que contavam suas experiências de guerra. Aquilo era "de­cupado" em quadrinhos e a gente ilustrava. Eu tenho essa revista lá em casa, é FEB, um negócio assim. Eu fazia ilustração pro Globo também. Depois veio o Como Fazer Histórias Infantis pra Vecchi. Depois acho que veio o problema da CETPA lá no Rio Grande do Sul, o Sepé, o Vizunga e aí acabou. Entrei pra publicidade e morreu o assunto. Surgiu então a Grafipar. Essa é mais ou menos a cronologia do negócio.

Coleção de Aventuras - Força Expedicionária Brasileira, editora Garimar - 1958.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Livraria Gibi - 1969


A Livraria Gibi foi, provavelmente, a primeira gibiteria do Brasil, inaugurada em 1969 por Ademário de Mattos. Teve vários endereços, todos em São Paulo - Capital, mas o primeiro deles foi na rua Conselheiro Crispiniano.

Ademário, amante dos quadrinhos, tinha um escritório de despachante, começou comercializando seus próprios gibis mas frequentemente levantava um empréstimo bancário, comprava o acervo de algum colecionador e vendia picado em seu estabelecimento. Em 1980, passando por dificuldades financeiras, José Mojica Marins, o Zé do Caixão, encarregou Ademário, já em seu terceiro endereço, na rua Xavier de Toledo, de vender sua coleção!

A livraria foi importantíssima para o desenvolvimento do cenário dos quadrinhos no Brasil, aglutinando em suas dependências, além de colecionadores, artistas e estudiosos da 9ª arte.

Além de revistas antigas tinha também fanzines, como o Pica-Pau de Armando Sgarbi e a lendária revista Balão, de onde surgiram nomes como Luiz Gê, os irmãos Caruso, Laerte e Angeli e o que havia de mais moderno no mercado internacional dos quadrinhos, que naquele momento passava por um a grande efervescência, com os álbuns adultos europeus, o resgate de clássicos do passado, das décadas de 1930 e 1940 e a aceitação dos quadrinhos como uma nova e importante linguagem de comunicação.

Em 1970, os originais da primeira aventura de Flash Gordon estavam desaparecidos. Durante o Congresso Internacional de Histórias em Quadrinhos realizado no MASP - Museu de Arte de São Paulo, Ademário surgiu com um exemplar do álbum do herói publicado pelo Suplemento Juvenil em 1937. A publicação foi rapidamente adquirida por Claude Moliterni, que participava do evento, e serviu de base para todas as publicações europeias da aventura que foram editadas em seguida.


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Em 1971 a Ebal publicou na contra capa da revista Mindinho nº 23 o seguinte texto: 


"Cercado por livros raros do Fantasma, Flash Gordon, Príncipe Valente; cartazes de Super-Homem, recortes de tudo quanto é publicação de histórias-em-quadrinhos e um álbum raro, da Década de Ouro, O Guarani, publicado pelo Correio Universal, aparece nesta foto o Ademário de Mattos, proprietário da Livraria do Gibi, em São Paulo. Essa livraria está localizada na rua Conselheiro Crispiniano, 404, sala 502, bem no centro da paulicéia e vende tudo quanto é edição antiga de Suplemento Juvenil, O Globo Juvenil, Mirim, Gibi, Gazetinha, O Lobinho etc. Ademário foi o homem que apareceu no dia do encerramento do Congresso Internacional de Histórias-em-Quadrinhos e mostrou aos estrangeiros uma “avis rara": um exemplar autêntico e completo da primeira história de Flash Gordon no Planeta Mongo, publicada em 1937 pelo Suplemento Juvenil. Preço pedido pelo Ademário: 120 dólares americanos. E, imediatamente, o exemplar foi adquirido por Claude Moliterni, conforme a fotografia abaixo, vendo-se no grupo, entre outros, o Professor Alvaro de Moya, Rinaldo Traini (organizador dos congressos de Lucca), Rodolfo Zalla (desenhista de histórias-em-quadrinhos) e Floriano Hermeto de Almeida Filho (desenhista de O Judoka)".

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A revista Bondinho também fez em 1971 a seguinte matéria: 

"A Casa do Gibi

Em 1969, Ademário de Mattos cansou de sua profissão de despachante policial, e transformou a sua pequena sala, na rua Conselheiro Crispiniano (404-502), em uma livraria especializada em histórias em quadrinhos, a Livraria do Gibi.

As revistas não são baratas mas são raras e o freguês não precisa ser um freguês. Quem não pode pagar 10, 20, 50 ou 300 Cr, pode simplesmente conversar com seu Ademário e ficar lendo ali mesmo. Ele conhece como ninguém (porque gosta dos quadrinhos, mesmo, e não é apenas um "teóríco") a história da HQ no Brasil.

Os Suplementos com as histórias famosas começaram a aparecer no Brasil na década de 30. Em 14/3/34, o jornal "A Nação“ lançou o “Suplemento Juvenil“, aos domingos, com histórias de Lee Falk, Phil Davis, Alex Raymond e outros. No 150º número, deixou de ser um dos suplementos para ser uma edição trissemanal, vendida separadamente.

Mais tarde, o mesmo grupo lançou o “Suplemento Juvenil Mensal“ e “O Lobinho". "No "Lobinho", estavam o Tarzan, de Hal Foster; Joe Sopapo, de Ham Fisher; os Escoteiros Heróicos, de Ray Powers; Ana, A Pequena Orfã, de Harold Gray; Buck Rogers, de Dick Calkins e nas edições mais recentes, O Espírito.

Nos fins de 1939, o “Globo Juvenil" ganhou os direitos autorais de todos os personagens do “Suplemento Juvenil", e o Consórcio Suplementos Nacionais Ltda. teve de transferir os personagens de “O Lobinho" para o “Suplemento Juvenil” (a vendagem era maior). No dia 17 de novembro de 1939, em seu 950º número "O Lobinho" deixou de circular.

Na Casa do Gibi o preço do Lobinho é 30 Cr$ e do Suplemento Juvenil - com histórias em série - é de 10 Cr$. No final do último capítulo, era lançado o álbum com a história completa - o Suplemento Juvenil, Edição Especial. O primeiro álbum foi "Flash Gordon no Planeta Mongo", de Alex Raymond, desenhada em 34, publicado no Brasil em 37, e vendida por 300 réis. Seu preço atual, na Casa do Gibi: 400 Cr$. Outra história de Alex Raymond, Jim das Selvas, publicada em 37, está à venda por 300 Cr$. O mesmo preço “A Viagem ao País de Savessá", de Mandrake (Lee Falk e PhilDavis). Seu Ademárío tem, ainda, a segunda história do Fantasma, “Os Piratas do Céu" - do tempo em que a patrulha da selva de Bengala não confiava no herói. É de 1937, preço: 100 Cr$. Outros álbuns: “As Três Aventuras de Bill, o Agente X-9”, de Alex Raymond: 200 Cr$.

A partir de 1939, e por toda a década de quarenta, as edições do Globo Juvenil reúnem quase todos os grandes heróis (preço atual: 10 Cr$)".

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Em 1974 Sebastião Seabra ilustrou a capa do Boletim/Convite para a inauguração do novo endereço da livraria.

Quando se mudou para um novo endereço, na avenida Brigadeiro Luís Antônio, a livraria lançou um fanzine/convite com o seguinte texto: 

"A livraria Gibi cresceu!

Raro é o leitor ou connaisseur de quadrinhos que nunca tenha entrado na livraria Gibi, até poucos dias atrás uma modesta sala no 6º andar do Edificio Rex... um esconderijo onde muitos sotãos, muitos porões, muitas arcas deixaram aparecer os seus tesouros. Tesouros que levaram o incansável Ademário, a viagens de centenas de quilômetros para trazê-los à luz. E agora a Livraria Gibi cresceu. Motivada por uma necessidade muito grande: o crescente número de interessados e a diversificação destes.

Nos primeiros tempos de 1970, quando a Livraria Gíbi e os interessados tiveram seus primeiros encontros, assim como ela se encontrava, era o bastante. Foram os saudosistas os primeiros a aparecerem. Buscavam as raridades maravilhosas dos anos dourados que foram o fim da década de 30 e o início da de 40. Mas com o tempo, muitos apareceram em busca das reedições americanas, dos livros sobre seriados, dos livros de sonhos de Hollywood dos posters dos heróis, dos posters feitos por traços famosos como o de Frazetta e até dos cobiçados undergrounds americanos. E para atender a tudo e a todos só havia uma solução: A Livraria Gibi precisava crescer e por isto ela cresceu.

No dia 10 de Janeiro a Livraria Gibi abrirá pela primeira vez,as portas do seu novo endereço para receber os amigos e clientes em um coquetel, nesta opurtunidade os presentes poderão se encontrar com os tesouros escolhidos para esta reabertura, querem uma amostra? Mirins encadernados do nº 16 ao 599: (comuns sexta-ferinos e mensais de 37 a 42) Gazeta Juvenil nº 1 a 15; Gibi e Globo Juvenil (mensais 43 a 45); Suplemento e Globo Juvenil (semanais de 37 a 49); Seleção Colorida nº 1 a 17.

Todos os heróis vão estar presentes podem ter certeza: Pato Donald, Brucutu, Príncipe Valente, Ferdinando, Jim Gordon, Nick Holmes, Fantasma, Mandrake, Raio, Pequeno Sheriff, Flash Gordon, Capitão César, Brick Bradford,

Também não foram eaquecidas as revistas que fizeram e contam a história e a moda das anos dourados: Cruzeiro, Cena Muda, Fon-Fon, Mundo Ilustrado, A Noite Ilustrada, A Cigarra, A Carioca, A Careta,

E pare Contentar os Fãs das edições americanas do Spirit, da Vampirella, das edições Famosas, dos undergrounds, dos posters, dos livros de cinema, a Livraria Gibi tornou-se importadora: (portanto o que não for encontrado lá e só falar com o Ademário que logo logo tem...)".

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A seguir, alguns depoimentos de frequentadores da livraria:

"A Livraria Gibi foi ponto de encontro de desenhistas da velha e da nova guarda e foi essencial para que houvesse a troca de conhecimentos na área de quadrinhos e humor gráfico. Ficava na galeria da Brigadeiro Luiz Antônio quase esquina com a  avenida Paulista. O Ademário, dono da loja, conseguia muitas revistas que não se encontravam nas bancas, como a National Lampoom, revista americana de sátiras que acabei comprando uma coleção naquela loja. 

Mas os encontros eram de sábado à tarde e o maior frequentador era o Jayme Cortez. Tinha uma paciência total com os novos desenhistas que levavam seus trabalhos para serem analisados pelo editor e grande desenhista português radicado no Brasil. Mas outros desenhistas também apareciam como o Primaggio, então editor de quadrinhos da Abril, o Ruy Perotti, criador dos personagens Satanésio e Sujismundo, entre outros. Foi lá que conheci o Franco, Wagner Augusto, Brenda Susan, Louis Chilson, Cassiano Roda e que juntos produzimos a revista KLIK para a Ebal. Eu já conhecia o Gualberto Costa no 2º Salão Mackenzie de Quadrinhos e Humor Gráfico, que veio se juntar ao grupo. Foi muito importante para meu início de carreira pois comecei a entender melhor o mercado de trabalho e a editar.

Ademário incentivava esses encontros e sua loja era a principal naquela época. Depois mudou para um edifício perto do teatro Municipal no centrão, em algum andar. Nunca mais voltou a ter a mesma frequência. Bons tempos que me lembro sempre que pego nas mãos a coleção de National Lampoon e outras revistas que só na Livraria Gibi se podia encontrar".
JAL - José Alberto Lovetro - cartunista e presidente da ACB

"Conheci o Clube do Gibi através do Franco de Rosa, a livraria ficava na Rua Conselheiro Crispiniano, não lembro o numero nem o andar, o proprietário era o Ademário um conhecedor e hábil comerciante de revistas em quadrinhos nacionais antigos, depois a livraria se transferiu para a Rua Brigadeiro Luiz Antônio na galeria do cine Paulistano próximo a Avenida Paulista nesta época o Ademário tinha se associado ao Piter, com a dissolução da sociedade a livraria se mudou para a Rua Xavier de Toledo. A Livraria sempre foi frequentada por aspirantes a desenhistas em quadrinhos e mestres como o Maurício de Sousa, Jayme Cortez e Gedeone Malagola

Foi uma época muito boa em que conheci o tradutor das publicações Disney da editora Abril o José Fioroni Rodriguez, Sergio Pereira (colecionador), Sebastião Seabra (desenhista do Capitão Caatinga e inúmeras publicações da Grafipar), Reinaldo de Oliveira um dos responsáveis pela primeira exposição de quadrinhos no Brasil juntamente com o Álvaro Moya (ocasionalmente frequentava a livraria) e muitos outros colecionadores como Valdo Vieira (dono da maior coleção de quadrinhos nacionais que conheci até os anos 1980, segundo a lenda ele tinha em sua coleção o Action Comics com a primeira aparição do Superman, além do maior acervo do que havia sido publicado no Brasil) o Otacílio Costa d'Assunção Barros da revista Mad da editora Vecchi. 

A livraria me permitiu fazer ótimas amizades e tomar conhecimento dos inícios das publicações em quadrinhos no Brasil.

Abraço".
Giovanni Danilo Voltolini - pesquisador e tradutor de quadrinhos


*Agradecimentos ao amigo João Antonio Buhrer pelo envio das imagens e a todos que gentilmente deram seus depoimentos.