Em 1979, a editora Abril, por meio de alguns funcionários visionários e amantes dos quadrinhos, lançou um projeto de distribuição de tiras de jornal que deveria funcionar nos moldes dos syndicates norte-americanos, o Projeto Tiras. Era composto primeiramente por trabalhos de desenhistas e roteiristas ligados à própria editora, mas, num segundo momento, pretendia abrir o leque e fornecer tiras de outros autores.
Capitaneado por Ruy Perotti e Wagner Augusto a ação durou apenas alguns meses devido a vários problemas externos e internos, inclusive à não compreensão do produto por setores da própria editora.
Zé Pessimista por Izomar.
A seguir podemos ler a carta de apresentação do Projeto assinada por Victor Civita, fundador da Abril:
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"Caro Editor:
Finalmente, um passo muito importante vai ser dado agora para preencher uma das mais sentidas lacunas do panorama cultural e artístico brasileiro. Falo do PROJETO TIRAS, que visa à promoção e distribuição, a jornais selecionados como os mais representativos do mercado, de histórias em quadrinhos com personagens e autores exclusivamente nacionais.
Todos os envolvidos no PROJETO TIRAS serão certamente beneficiados com ele:
- os autores nacionais, que finalmente terão oportunidade de divulgar seus trabalhos - hoje, reconhecidamente, do melhor nível internacional;
- os jornais, que receberão permanentemente, e a baixo custo, um material editorial de alta qualidade e inegável interesse para seus leitores;
- e os leitores, que poderão encontrar material tipicamente brasileiro, com que se identificarão mais profundamente.
O PROJETO TIRAS abrange duas modalidades:
- Publicação das histórias em quadrinhos sob a forma de tiras diárias, no corpo do jornal.
- Publicação de suplementos infanto-juvenis semanais.
Anexo à presente, encontrará nosso “portfolio", com amostras dos autores participantes, previamente selecionados pela Abril, com sua tradição de muitos anos em qualidade editorial e experiência específica em histórias em quadrinhos.
Confio em sua adesão a este projeto que, por suas características pioneiras, visa à valorização do autor nacional e à divulgação dos temas e costumes brasileiros. E contribuirá para destacar ainda mais seu jornal, acrescentando entretenimento de alta qualidade às demais características já tradicionais.
A seu inteiro dispor para quaisquer esclarecimentos adicionais, aproveito o ensejo para transmitir-lhe meus melhores cumprimentos.
Cordialmente
Victor Civita"
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Sujismundo por Ruy Perotti.
A ação foi anunciada na revista semanal Visão, de Henry Maksoud, concorrente de Veja. Curiosamente o semanário de Victor Civita não publicou sequer uma linha noticiando o projeto. Leiam a matéria a seguir:
"Mercado nacional para brasileiros
Nossos desenhistas sempre vociferaram contra o monopólio das histórias em quadrinhos mantido pelos “syndicates”, mas não podiam concorrer com eles. Agora, chegou a hora.
Nunca nenhum editor de jornal ousou dizer que não há mercado para as tiras de histórias em quadrinhos no Brasil: mesmo sabendo que os leitores riem amarelo com as graças estrangeiras, há sempre uma seção de humor na imprensa diária. Mas muita gente insistia em dizer que não dava para publicar autores brasileiros. Até que Maurício de Sousa provou, individualmente, que a questão não era bem essa. Tratava-se de criar o que muita gente sabe fazer, mas, principalmente, de contar com um sistema de distribuição eficiente, o que ele encontrou na Empresa Folha da Manhã, cujo carro-chefe editorial é a Folha de S. Paulo. Faltava, entretanto, montar um projeto que permitisse a presença não de um, mas do maior número possível de autores no mercado.
É o que faz a editora Abril, que estudou e detalhou seu "Projeto Tiras" durante os últimos seis meses, e o está lançando agora - já com contratos de fornecimento de tiras para dez jornais do interior de São Paulo e um de Fortaleza.
A idéia, trabalhada há dois anos, é de Ruy Perotti, criador do Sujismundo. Mas trata-se também de uma velha ambição da Editora Abril, interessada em "encontrar novos Maurícios de Sousa", para ampliar sua presença no mercado das revistas em quadrinhos, que hoje domina com a linha Disney e a Turma da Mônica.
Florisvaldo por Igayara.
A empresa chegou mesmo a editar uma revista-laboratório, Crás, com essa finalidade, em 1974. "Mas não deu certo", diz Perotti, "porque as revistas em quadrinhos começam nas tiras de jornais. Esse é também o histórico do Maurício. É preciso criar o personagem, testá-lo no dia-a-dia do leitor, marcar sua presença, firmá-lo. Só depois disso se pode pensar em lhe dar autonomia numa revista em quadrinhos." Por duas razões: uma é que os títulos estrangeiros já vêm com todo o merchandising pronto (filmes de cinema e de TV, brinquedos etc), "sendo impossível aos autores nacionais concorrer em igualdade de condições"; outra é que não se pode desprezar a lógica interna do produto, isto é, o início de personagens e autores nas páginas de jornais até chegar à revista e aos outros desdobramentos.
De grão em grão
Embora aparentemente óbvias, essas constatações são o produto de longa relação com o gênero - caso tanto de Ruy Perotti, diretor de arte, quanto de Wagner Augusto, editor do "Projeto Tiras", que destacam a importância cultural do projeto: criação de uma línguagem nacional de quadrinhos (já que a distribuição é para todo o país), no desenho como no texto, desenvolvimento de uma estética independente da implantada pelos modelos estrangeiros.
A verdade é que, mesmo com as atividades ainda incipientes, alguns resultados nesse sentido já podem ser verificados. Wagner destaca, por exemplo, o caso do personagem Florisvaldo (do paulista Igayara), que já vem sofrendo transformações no desenho - mais solto e mais simples do que no começo e o de Giba (da dupla Farias e Paiva), um negrinho favelado que vai ganhando em ironia, malandragem e causticidade.
O projeto, agora uma operação tiras, conta com doze personagens autenticamente brasileiros - do cangaceiro Carrapicho (de Avalone) ao favelado Giba, do indiozinho Tibica (de Canini) a Sujismundo, que passam a frequentar páginas de diários e semanários do país, com base na estrutura de distribuição de publicações da Editora Abril.
Giba por Farias e Paiva.
De acordo com Perotti, o plano é que, “em seis meses, esse sistema mude totalmente o panorama da história em quadrinhos na imprensa nacional”. Se tudo der certo - e parece que vai dar, pois a aceitação das tiras brasileiras tem sido de 100% -, pode-se contar até com a expansão internacional do projeto, com a implantação do syndicate Abril. As etapas a serem vencidas são: atingir cinquenta jornais até fim de março, na fase de teste de receptividade dos personagens; lançar suplementos semanais com os personagens mais fortes, a partir do segundo semestre; atingir duzentos jornais em dezembro, quando os autores deverão passar dos catorze iniciais a trinta. A partir de então passa-se à etapa editorial propriamente dita: lançamento dos personagens mais aceitos em revistas, sob a forma de uma "coleção nacional", que preparará autores e personagens para virarem títulos independentes, com periodicidade determinada, e, finalmente, para lançamento de produtos de atividade, tipo "destaque e brinque", de álbuns e de uma linha de merchandising.
O segredo do projeto está em uma distribuição eficiente e no preço baixo, que varia de 60 a 80 cruzeiros, no mesmo nível do material internacional, cujo custo vai de 3 a 5 dólares por unidade. Nessa fase, a empresa paga 40% do valor das tiras vendidas ao autor, custeando a produção, enquanto na fase de revistas o direito autoral será o usual: 5% sobre o valor da capa (para as tiras, autor é exclusivo da Abril; para as revistas, assina um contrato de preferência apenas). Por enquanto, jornais, autores e empresa parecem satisfeitos com os resultados. Maurício de Sousa, consolidado em sua posição, não deve temer a concorrência dos "novos Maurícios". Resta saber como reagirão as distribuidoras do material estrangeiro, já que os syndicates detêm ainda 90% do mercado brasileiro de histórias em quadrinhos. Serão eles, agora, a rir amarelo?
Visão, 5 de março de 1979"
Agradecimentos ao jornalista e editor Wagner Augusto pela cessão do material.
Um comentário:
E,assim,mais um bom projeto,que tinha a nobre intenção de valorizar a HQ Nacional, vai pelo cano,graças à má vontade de alguns funcionários da própria editora que criou este projeto...
Podemos,assim,concluir que a História das HQs brasileiras foi,é.e,pelo jeito vai continuar sendo construída assim: AOS TRANCOS E BARRANCOS!!!
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