sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Silvio Fukumoto - Entrevista - 1988

Em março de 1988, Silvio Fukumoto, então Diretor do Departamento de Quadrinhos da editora Abril, concedeu a entrevista abaixo ao jornal Portal. Embora um pouco datada a matéria nos dá uma boa ideia de como os quadrinhos eram vistos pela grande empresa gráfica. Leiam e tirem suas conclusões.
Fukumoto quadrinizou o romance O Garimpeiro (acima), de Bernardo Guimarães, para a revista Aventuras Heroicas da editora La Selva, onde havia começado como letrista, em 1955.
 
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HQ: a Abril abre o jogo

É o que Silvio Fukumoto, diretor dos quadrinhos da editora Abril, nos mostra nesta edição.

Entrevista de Goyo Yamashita

Os quadrinhos ou HQ, uma forma de comunicação de massa, têm uma longa e interessante história. Neste número, Silvio Fukumoto, Diretor Responsável da Divisão de Quadrinhos da Editora Abril, nos revela o porque da longevidade dos personagens, seus questionamentos e toda a gama de técnicas que envolvem os quadrinhos.


Atualmente, qual o carro chefe das histórias em quadrinhos?

O Almanaque Disney. Durante muitos anos foi a revista Tio Patinhas.

No caso dos personagens Disney, qual a porcentagem das histórias produzidas aqui no Brasil?

Boa parte é feita aqui, nós recebemos também diversas colaborações de outros países, principalmente da Itália que é a maior produtora Disney do mundo e que nos envia muito material.


Existe um estudo de mercado para se achar uma personagem?

A personagem não. O que existe é uma pesquisa sobre as revistas já existentes. Este estudo nos permite delimitar o tipo de público alvo. Há uns quinze anos, todas as outras publicações atingiam somente uma parcela de público. Um exemplo: revistas como a Luluzinha, o Bolinha, tinham uma porcentagem de 65% do público entre meninas de 8 a 10 anos. As revistas do tipo Tarzan e outras de aventuras tinham como público meninos. O que demonstra dois tipos de limitação, a primeira pelo sexo, a segunda pela idade. Então aí que as revistas Disney levavam vantagem, porque estas não sofriam estas restrições, pois elas eram feitas pra toda família.

Durante quanto tempo uma personagem se mantém? Ela não fica démodé?

O público de HQ sempre vai se renovando e como a personagem não envelhece, há sempre um renovação.

Mas e no caso dos super-heróis, eles têm uma tendência a sumir?

Não, eu acho que não, veja o caso do Super-Homem, ele já tem mais de 50 anos, o Batman também. Os super-heróis vão se adaptando, sofrendo mutações de acordo com as transformações que sofre o mundo. Veja o caso do Capitão América, que foi criado pelo oba-oba americano, no tempo da guerra como uma colaboração dos quadrinistas para o esforço de guerra americano. O Capitão América nasceu como uma exaltação da nação americana no combate às forças do eixo, principalmente a Alemanha. Depois que acabou a guerra, o Capitão América ficou sem função, acabou a missão para a qual ele havia sido criado.

Como é que funciona o sistema dos quadrinhos?

A HQ é uma modalidade de comunicação de massa, é uma história contada através de imagens e de preferência numa sequência cinematográfica. No início de HQ eles não contavam histórias complicadas, por isso não tinham textos. Com o tempo, a HQ começou a contar histórias mais complicadas e para isso precisava-se utilizar textos abrangendo os balões e recordatorios. Então os balões substituíram as falas porque os quadrinhos não têm som. Quanto a falta de movimento, esta parte é suprida pelo desenhista que procura dar a idéia de movimento através da sequência de desenhos. Agora o resto fica por conta da imaginação do leitor, para perceber aquela sequência. Então deve-se observar que uma legítima HQ não pode ter muito texto, as imagens devem contar a história.

E o processo gráfico?

O desenho é feito a nanquim. Depois é feito um filme das cores com base num guia de cores. Posteriormente, fotografa-se o original do desenho a traço que é reduzido a um filme positivo chamado rotofilme que reduz o desenho para o tamanho da revista 11,4 cm de largura mais ou menos. Feito o filme do preto, são feitos mais três filmes, um amarelo, um azul e um vermelho. Cada filme é gravado num cilindro que vai imprimir cada uma das quatro tintas, fazendo com que a superposição destas alcance o resultado final.

Os quadrinhos contaram muitas histórias relativas a best-sellers?

Como se trata de uma modalidade, pode-se contar qualquer história, até a Bíblia já foi feita em quadrinhos. A história do Brasil, os clássicos da literatura, os maiores best-seller foram quadrinizados, utilizando essa forma mais fácil de comunicação e que levou a cultura para milhões de leitores que de outra forma nunca teriam tomado conhecimento destas obras literárias, como é o caso de Romeu e Julieta, Don Quixote de La Mancha, Paraíso Perdido, Quo Vadis, Ben-Hur, Os Lusíadas, lracema, O Guarani, Primo Basílio, Don Casmurro etc.


E como está dividido o público leitor Disney?

Mais da metade do público é adulto, universitários. De um modo geral, as histórias Disney são feitas para todos os membros da família, sem distinção de sexo ou idade. Assim como todos os filmes que Walt Disney lançou, A Gata Borralheira, Bambi, e que foram mostrados para o Mundo. São histórias perfeitamente compreensíveis para as crianças mas que também agradam aos adultos. Veja o filme O Mágico de Oz, que não é do Disney, mas que é um clássico de literatura infantil criado por James Lyman Frank Baum no começo do século e que posteriormente foi levado às telas do cinema com um cenário deslumbrante. Uma história muito bonita e que acabou se tornando um clássico do cinema. Uma história que é basicamente infantil, mas que agrada também aos adultos.

A Abril tem algum tipo de publicação na linha erótica?

Em quadrinhos não. Essa modalidade a que você se refere, chama-se underground. Uma espécie apelativa que surgiu quando os quadrinhos entraram em decadência pela concorrência da televisão, pela mudança dos costumes, pela perda do espaço no tempo disponível de cada leitor. Então eles começaram a partir para outras modalidades e o underground foi uma das formas encontradas pelos quadrinistas americanos, franceses e italianos. O underground não chega a ser uma história pornográfica, pois ela contém muitos elementos artísticos, mas são histórias que subvertem a velha ordem, como esse negócio de final feliz, mensagens construtivas. E o underground não tem este tipo de preocupação. Há formas piores que o underground, que são as histórias puramente pornográficas, uma espécie de literatura de baixo nível de aventureiros que só querem ganhar dinheiro e não estão preocupados com o público.


Como você vê a questão de História D'O e os quadrinhos do Zéfiro?

Não tenho uma ideia formada, não posso comentar.


Como é que ficou o posicionamento do index após a abertura democrática?

No nosso caso, não são as autoridades que proíbem, nós é que temos que ter um auto policiamento, pois o nosso público é em grande parte formado por crianças. Então nós não temos o direito de entrar em todas as casas de família, levando mensagens negativas, anti pedagógicas.


Nunca houve um caso em que uma das histórias foi censurada?

Não, nas revistas não. Mas, às vezes, fomos obrigados a esclarecer alguns assuntos que as autoridades educacionais não gostaram.

Alguma vez o Sr. foi intimado a depor?

Algumas vezes, só que não foram coisas graves. Houve um caso, sobre uma propaganda de canetas, em que uma criança estava com a caneta no boca. As autoridades interpretaram este gesto como se a criança estivesse fumando. Isto pra eles parecia uma indução ao tabagismo. E é aí que você pode perceber que, numa edição qualquer, o herói não fuma. Pode aparecer um bandido fumando, mas o herói não pode dar mau exemplo. A não ser no caso underground que citei, onde o herói não é herói, é anti-herói. Mas, no geral, as revistas procuram seguir a linha exemplar, como no caso da Alegria, e as revistas europeias conhecidas, como a “Okapi" (francesa), a “Chickadee” (canadense), procurando não mostrar imagens negativas.

A discussão sobre a sexualidade das personagens Disney é um negócio muito discutido. Você poderia nos explicar por que os personagens Disney não têm pais?

Aí o caso é o seguinte: não está dito que eles não têm pais. Apenas eles não aparecem!

Porque Piconzé de Ype Nakashima foi o único longa-metragem feito até agora no Brasil?

Ah, não sei. Mas acredito que a principal causa tenha sido o problema financeiro. A falta de verba é o grande problema crônico dos novos lançamentos, pois estes podem não apresentar um retorno aos investidores.

Considerando-se que o Brasil já possui ótimos cartunistas, qual o maior empecilho para se criar um super-herói nacional?

O problema consiste na falta de verba, de recursos humanos e principalmente porque é difícil se criar uma personagem nova devido à grande concorrência dos heróis já existentes. Então, quem verdadeiramente decide é o público, que não quer saber se a personagem é nacional ou estrangeira. Se esta não agrada não adianta as campanhas tipo “AJUDE O MATERIAL BRASILEIRO”. Se você inventa uma personagem nova e escreve uma HQ, em curto espaço de tempo fica difícil vender este produto. Uma nova personagem não tem personalidade ainda, não tem vida, não tem currículo, não tem mundo. E estas coisas só são formadas ao longo da vida da personagem. Assim, quando o Mickey surgiu em 1928, o Walt Disney criou mundo dele. E é assim com todas as personagens, todas vão adquirindo peso e personalidade de acordo com as histórias em que se vai vivendo. Tudo isso leva um certo tempo e um grande investimento.

Você acredita na guerra do monopólio dos quadrinhos?

O monopólio dos quadrinhos não existe: Eu não conheço!

O senhor não acredita que hajam artistas cujos desenhos não foram devidamente apreciados?

Eu não conheço nenhum trabalho de valor que tenha sido engavetado, porque se um trabalho tem um bom potencial, qualquer editor gostaria de publicá-lo.

Mesmo que esse trabalho seja apreciado logo após uma campanha publicitária de uma personagem recém-lançada da mesma empresa?


Não sei se alguém faria isso, porque aqui na Abril, nós temos o interesse de encontrar cada vez mais material nacional.

Vai ter um montão de caras procurando emprego aqui, hein?


Risos... Eu quero é que apareçam muitas pessoas de talento. Nós aqui temos muitos colaboradores. Agora, argumentistas, o pessoal que escreve, está muito difícil de se encontrar, o que já não acontece com desenhistas. O mesmo problema. aconteceu no começo das HQ nos EUA, no século passado no jornal “New York World” de Pulitzer. Pulitzer era um jornalista de caráter muito inovador, um cara muito ousado que gostava de lançar novidades. Então, um dia, lançou uma série de histórias em quadrinhos. Só que nessa época, nos EUA, não havia desenhistas, nem cartunistas de quadrinhos, porque não havia a modalidade e, não havendo esta, não haviam especialistas. E o Pulitzer então encarregou um dos seus desenhistas, (estes tinham muito trabalho como ilustradores, porque até então, meados do século passado, não havia a fotografia. Assim, eram os desenhistas que ilustravam as matérias).

Os primeiros quadrinhos eram simples piadinhas, sem balões nem argumentação. Aí quando a idéia do Pulitzer vingou, muitos outros órgãos se interessaram pelos comics. Mas o Pulitzer tinha o seu desenhista, o Richard Fenton Outcault, que foi o precursor em criação dessas tiras em quadrinhos, os outros não. Aí então, os outros jornais americanos, como o New York Herald, Chicago Tribune, Washington Post, Examiner e outros, tiveram que importar especialistas da Europa, pois naquele continente havia uma grande safra de desenhistas, destacando-se as alemães e os austríacos. Então, os primeiros artistas da HQ americanas são alemães e austríacos, como Frederick Opper e Charles Kahles. Inclusive naquela série, Os Sobrinhos do Capitão, são alemães.

Como você vê a questão da dupla de criação (desenhista e redator) nas histórias em quadrinhos?

Eu acho que a maioria dos desenhistas tem condições de bolar as histórias. O ideal seria que o próprio autor soubesse desenhar, pois se um escreve e o outro desenha, há uma dessintonia, um descompasso no que o autor imaginou e o desenhista interpretou. Nessa transferência de pensamento do autor para o desenhista, existe uma perda. Então, no nosso caso, o argumentista costuma fazer um rafe, um esboço. E mesmo que não seja um desenho bem feito é melhor do que narrar, porque por melhor que seja a narrativa esta ainda é inferior a um desenho mal feito. Agora o grande criador do material Disney, Carl Barks, um gênio dos quadrinhos, escrevia e desenhava. Suas histórias eram geniais. Quando parou de escrever, o material Disney caiu muito de qualidade, o que refletiu muito na vendagem. Até hoje, paulatinamente, estamos republicando as histórias de Carl Barks. Histórias antológicas, geniais, que fizeram as revistas Tio Patinhas e o Mickey ficarem campeãs de vendagem no país e na América do Sul. A Tio Patinhas chegou a vender mais de 500 mil exemplares por mês, figurando como a revista que mais vendia no Brasil, não só quadrinhos, mas entre todo o segmento de revistas, isto na década de 1970.


SILVIO FUKUMOTO - Natural de Cafelândia, iniciou sua carreira nos quadrinhos como letrista na editora La Selva, foi jornalista e bacharel de Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), foi revisor e chegou a Diretor Responsável da Abril na Divisão de Quadrinhos por mais de 12 anos. Faleceu em 2009.

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