Nesta entrevista publicada na revista de Cultura Vozes nº 07 em julho de 1969, portanto, antes do lançamento da revista Mônica pela editora Abril, podemos observar que Maurício ainda tinha a esperança de distribuir tiras de outros autores por intermédio da MSP.
"Ninguém põe em dúvida a importância da história em quadrinho. Ela, de um lado, é valorizada reacionariamente como arte por aqueles que não aceitam a televisão. Mera atitude de artistificação que não leva a nada nem mostra o valor real do quadrinho. Mas de outro lado, há um enfoque crítico que situa o quadrinho como veículo comunicador de primeira água.
A linearidade do livro foi ultrapassada pela maior carga de surpresa e informação da revista quadrinizada. O quadrinho é a solução tipográfica presente/futuro até que chegue a hora e vez do livro-cineminha-de-bolso universalizado.
A Revista VOZES, pela segunda vez em 1969, insiste no problema da Comunicação. É a primeira revista no país a dedicar um número monográfico à história em quadrinhos. É uma tentativa na linha de compreender a cultura de massa. As duas revoluções industriais acabaram com a obra-prima.
Se a arte pequeno-burguesa subsiste é devido às contradições históricas do sistema. Os profetas de hoje, profetizando o amanhã, afirmam o estado de coma da literatura de academia, da pintura de galeria, da música bem como do artesanato objetal. É certa uma coisa: os processos de produção são impiedosos. Há todo um questionamento autofágico e, dialeticamente, há um alvorecer ainda sem nome de uma cultura para consumo planetarizado.
É neste contexto de vanguarda que surge a necessidade de se dimensionar o quadrinho.
Maurício de Sousa: Uma vitória do quadrinho brasileiro.
Em 1962 surgiu um desenho novo nas páginas da "Folha ele S. Paulo", assinado par um desconhecido: Maurício. De lá para cá, 7 anos de sucesso e progresso.
Sucesso porque, hoje, os bonecos de Mauricio são vistos diariamente por mais de 3 milhões de pessoas, em S. Paulo e interior paulista. Aos domingos seu público aumenta duas ou três vezes. Seus bonecos são veiculados por suplementos infantis, produzidos pela "Maurício de Sousa Produções", em 45 cidades, inclusive nas distantes Teresina (PI), e Erexim (RS). A Trol vai Industrializar seus bonecos. As propagandas feitas com seus bonecos estão na frente das pesquisas da Gallup (a Mônica colocando um elefante na panela). Mais do que o sucesso o progresso. O traçado de Maurício se aprimora. Apareceram outros bonecos e heróis, alguns muito populares, principalmente no público infantil. O texto que publicamos a seguir são tópicos de uma entrevista concedida no dia 16 de maio, p. p., em S. Paulo.
REVISTA VOZES - Maurício, poderia dizer aos leitores de Vozes, os motivos e os dados marcantes de sua vida como criador de histórias em quadrinhos?
MAURÍCIO DE SOUSA - Sempre gostei de desenho. Desde rapaz, sempre achei também que fazia falta a história em quadrinhos brasileira, feita em casa, com motivos nossos e com espírito nosso. Não é xenofobia, mas falta alguma coisa no gênero por aqui. Então desde que mudei para S. Paulo comecei a desenhá-la.
RV - Você é de onde mesmo?
MS - De Mogi das Cruzes (SP), 33 anos, casado, três filhas.
RV - Uma delas a Mônica, não é? As outras não ficam com inveja?
MS - Não. Também as outras aparecem nas histórias. A Magali, comilona, é uma das meninas. A Maria Cebolinha, irmã do Cebolinha, também é minha filha. As três estão nas histórias, mas vivem se queixando que a Mônica aparece mais: "Pai, joga eu mais na historinha! É... só a Mônica, né?"
RV - Voltando ao assunto...
MS - Bem, desde o interior tentei fazer história em quadrinho. Logicamente não consegui, não havia condições. Fazia apenas algumas ilustrações para o jornal local. Vim para S. Paulo com 18 anos, pastinha de desenho debaixo do braço, como todo o mundo que vem tentar aqui ser desenhista. Não consegui me colocar, é lógico; meu desenho era de fato sofrível. Fui trabalhar na reportagem da Folha de S. Paulo, reportagem policial, onde aprendi a escrever numa linguagem enxuta, objetiva, mais popular e adequada para a história em quadrinho. Depois uni o aprendizado de escrever bem enxuto ao desenho da história em quadrinho, desenho que eu já fazia melhor. Criei então as primeiras histórias para o jornal. Primeiro, o Bidu, há uns 7 anos atrás, meus colegas de reportagem me auxiliavam bastante, inclusive evitando que eu fosse furado enquanto fazia as primeiras histórias, lá mesmo no Departamento de Investigação, na Polícia, onde eu fazia plantão. Depois vieram os outros bonecos. Nessa época (1963) a Folha de S. Paulo pensou em lançar um suplemento infantil, a Folhinha. Neste suplemento lancei o Horácio e mais outros personagens. Tornei-me de repente muito conhecido.
Uma Equipe contra o Truste Americano
Nesta ocasião eu já estava praticamente montando a minha equipe e estava formando os primeiros elementos. Era possível a criação e a distribuição de mais de 2 ou 3 histórias. Foi quando foi criada a maioria de nossos personagens (Mônica, Magali, Cebolinha, Maria Cebolinha, Bidu, Franjinha, Floquinho, Horácio, Chico Bento etc.) que atualmente estão em diversos jornais de S. Paulo: além da Folha de S. Paulo, o Diário da Noite, Diário de S. Paulo, Diário Popular, Jornal da Tarde (O Estado de S. Paulo). No começo foi duro. Tínhamos de escrever a história de madrugada, desenhar de manhã e vender de tarde. Além disso quebrar o tabu da história em quadrinhos brasileira. Os jornais, os diretores de jornais, não acreditavam que o público aceitasse as histórias brasileiras. Não acreditavam também que os desenhistas brasileiros aguentassem manter a história no jornal. Em alguns lugares onde eu não me identificava, o pessoal dizia que só aceitava história americana. Foi um dos motivos porque nossa primeiras histórias não eram tipicamente brasileiras. Eram assim meio universais. Não havia nelas ambiente brasileiro, não havia detalhes que as identificassem como uma produção brasileira. O pessoal estava digerindo material americano há 30 anos, acostumado de tal forma, que não aceitavam material diferente. Depois que os bonecos da Folhinha pegaram, nós começamos a criar alguma coisa mais regional. Hoje, por exemplo, temos o Chico Bento. É a história mais divulgada e mais vendida no Brasil. É o caboclinho, caipirinha de pé no chão, um jeca tatuzinho, que diz muita coisa séria.
Um Pouco de História das Histórias em Quadrinhos
RV - Gostaríamos de saber, ao nível de seu trabalho de pesquisa, o que Você aponta como mais relevante na história dos desenhos de quadrinho brasileiros, desde o Tico-Tico, em 1905.
MS - O Tico-Tico acostumou o pessoal aqui a ter uma publicação dirigida à infância. Durante 30 anos, só houve isso e não houve muita renovação, tanto que o Tico-Tico acabou. Acho que em termos de história em quadrinhos no Brasil, o fato mais importante foi o lançamento do Suplemento Juvenil, do Adolfo Aizen. Os americanos entraram então no mercado. O Suplemento acostumou o povo juvenil da época - que hoje, está nos postos de mando - a ler e consumir a estória de quadrinhos, como entretenimento, higiene mental, lugar comum muito usado, mas que se dá na realidade. Depois houve várias tentativas corajosas e honestas: Vida Juvenil, Vida Infantil, com algumas histórias brasileiras do Joselito, do José Geraldo. Depois Ziraldo, com Saci Pererê. Aqui em S. Paulo tivemos o Jayme Cortez, o Álvaro Moya e outros desenhistas. Foram corajosos e fundaram movimentos de classe para defender o desenho brasileiro, mas não foram adiante.
RV - E a experiência do Ziraldo, como você a viu?
MS - Ziraldo, no campo da história em quadrinho, é um capítulo à parte. Ele criou uma dimensão nova. O Saci Pererê dele era uma história bem brasileira que o público consumia. Por questões várias, comerciais e industriais, o negócio não foi para frente, não vendia. Aliás, história em quadrinhos não rende. Não é ainda um negócio rentável, a não ser que haja distribuição.
A Evolução
RV - Você depende dos desenhistas internacionais? Um aluno da Escola de Comunicação, do Rio, diz que seu desenho é bem parecido com o traçado de Margie, criadora de Bolinha e Luluzinha. Você, pessoalmente, tem consciência desta(s) dependência(s), ou a(s) rejeita?
MS - Ao contrário. Cumprimento a pessoa que você menciona. Está perfeitamente certa, tanto mais que você lhe mostrou desenhos meus de 63/64. Não que eu esteja dependendo ainda de Margie, mas quando comecei a desenhar era fanático pelo Bolinha e pela Luluzinha. Lógico, inconscientemente, a gente vai assimilando e fazendo algo parecido, criando na mesma escola. As primeiras histórias, tinha ainda bastante da Margie, ou do espírito da história da Margie, mais do desenvolvimento dinâmico da história do que do desenho propriamente dito. A personalidade dos bonecos da Margie influenciaram-me realmente bastante. De uns 4 anos para cá, com outras influências que a gente sofre, fatalmente, fui me divorciando mais e mais.
Quadrinho Brasileiro para Europeus
RV - Com relação à exposição de Lucca (Itália), o que Você viu lá de vanguarda em matéria de quadrinho? E para Você e para o desenho brasileiro, que perspectivas abriram?
MS - Na III Exposição Internacional dos fumetti (desenhos em quadrinhos), de Lucca, a experiência foi fascinante. É a segunda vez que vou à exposição de Lucca. Lá a gente se encontra com as várias tendências das histórias em quadrinhos da atualidade. Houve muita discussão, querendo cada qual fazer valer sua escola, e provar que determinada tendência é a mais adequada, oferece maior continuidade criadora, ou é mais recebida pelo público. Apesar destas discussões todas, na última amostra não houve novidades maiores. As novidades revolucionárias do quadrinho ocorreram há uns doi ou três anos, com os lançamentos de estórias como Jodelle, Barbarella, Saga de Xam e histórias de non-sense, onde o desenvolvimento da história fica para o segundo plano, ficando só a preocupação plástica.
Quanto ao nosso material lá, foi um material que eu considero comercial, para vender e atingir o grande público. Não podemos ainda, de forma alguma, pesquisar e chegar com histórias que o público não entenda. No terreno, por assim dizer café com leite da história em quadrinho, nós agradamos, felizmente, a parte mais popular do público. Tanto que estamos com contrato com a Editora Kirk, de Gênova, para lançamento de nosso material na Itália e depois no resto da Europa.
RV - Maurício, como Você vê o problema da cultura de massa relacionada o com o quadrinho? Gostaríamos que Você colocasse a função do quadrinho na comunicação coletiva e dimensionasse isso em termos de Brasil.
MS - Bem, no tocante à comunicação de massa a história em quadrinho está, segundo os modernos pesquisadores, ao lado do cinema e da televisão. Principalmente no Brasil, onde a grande maioria frequentou até o 4º ano primário. Para uma população semi alfabetizada, quadrinho é importante. A história em quadrinho pode perfeitamente ser de uma valia sem tamanho para a divulgação da cultura e de uma filosofia de vida bem brasileiras, adequadas às nossas condições sócio econômicas. O quadrinho pode ser uma arma fabulosa em favor do espírito brasileiro, da nacionalidade e da cultura.
A função do quadrinho no Brasil de hoje, principalmente como nós na Maurício de Sousa Produções estamos fazendo, só vai ser entendida no futuro. Vejamos o que ocorre hoje. A Folhinha de S. Paulo segundo o pessoal mesmo da Folha de S. Paulo, ajuda a vender a tiragem de domingo, que é bem maior do que a normal. A Folhinha é motivo de briga nas casas. A criançada quer ler as histórias, participar dos joguinhos na parte de divertimento. Essa criançada de hoje vai se acostumar com a Folhinha e depois passar a ler a Folhona. Vai ser o futuro público leitor do jornal. Vai se acostumar a ler jornal, coisa que brasileiro adulto não fazia.
Isto que está acontecendo na Folha de S. Paulo acontece nas dezenas de cidades, cujos jornais publicam nossos desenhos e encartam nosso suplemento infantil. A criançada sabendo que saiu o suplemento, vai exigir do pai que traga para casa determinado jornal. Isto está acontecendo. Jornais estão aumentando a tiragem - e sabemos porque pedem cada vez maiores remessas de nossos suplementos. Portanto, a criançada de hoje irá ler o jornal de amanhã. Não ficará tão alienada da realidade.
A Concorrência Americana: Parada Difícil
RV - Como desenhista quais os macetes e complicações profissionais que tem de enfrentar um novato. E a concorrência com o desenho estrangeiro?
MS - o material americano foi até hoje o responsável pelo não aparecimento de desenhistas nacionais. Digo, desenhistas nós tivemos vários, mas hoje estão-se dedicando à publicidade ou foram para os Estados Unidos. E’ a velha lei da oferta e procura. A história estrangeira, não só a americana, mas também a inglesa e algumas francesas, chegam aqui a preço de banana. A tira de jornal está custando apenas um dólar. Ora, enquanto isso qualquer desenhista profissionalmente bom, vai sentar à prancheta e desenhar uma tira que custa em homem hora duas ou três vezes mais. Fatalmente ele vai vender para um só jornal porque não temos distribuidoras nem sindicatos nos moldes dos sindicatos americanos. A única tentativa aparecida no Brasil é a nossa redistribuidora, aqui na Maurício de Sousa Produções.
A venda da história em quadrinho, para um jovem que começa, é difícil. Infelizmente, até eu estou concorrendo com os desenhistas brasileiros que estão surgindo por aí. Preciso vender minhas histórias pelo preço das histórias americanas, senão não coloco a produção do estúdio. Por outro lado, estou tentando abrir campo e criar condições para que haja necessidade de diversificação do material. Hoje já estamos planejando o lançamento de revistas para as bancas. Vamos aumentar o número de páginas de nossos suplementos em condições tais que poderemos comprar material dos free-lancers e desenhistas que estão em agências de publicidade. Vamos lançar assim novos personagens, novos bonecos, e novos desenhistas, independentemente das restrições editoriais que havia anteriormente. Afinal, somos todos desenhistas. A venda é difícil. A independência é relativamente difícil. Nossa agência funcionando dá para mais dez ou doze desenhistas viverem exclusivamente de histórias em quadrinhos. Quando houver mais equipes e mais condições provavelmente vai haver mais desenhistas de histórias em quadrinho no Brasil e alguns excelentes estão no forno para sair.
Enfim, história em quadrinhos no Brasil é uma aventura. Mas é uma aventura gostosa, agradável, e, para mim, fazer história em quadrinho é higiene mental".
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