sexta-feira, 26 de maio de 2017

Maurício de Sousa - Entrevista - 1969

Nesta entrevista publicada na revista de Cultura Vozes nº 07 em julho de 1969, portanto, antes do lançamento da revista Mônica pela editora Abril, podemos observar que Maurício ainda tinha a esperança de distribuir tiras de outros autores por intermédio da MSP.

"Ninguém põe em dúvida a importância da história em quadrinho. Ela, de um lado, é valorizada reacionariamente como arte por aqueles que não aceitam a televisão. Mera atitude de artistificação que não leva a nada nem mostra o valor real do quadrinho. Mas de outro lado, há um enfoque crítico que situa o quadrinho como veículo comunicador de primeira água. 
A linearidade do livro foi ultrapassada pela maior carga de surpresa e informação da revista quadrinizada. O quadrinho é a solução tipográfica presente/futuro até que chegue a hora e vez do livro-cineminha-de-bolso universalizado.

A Revista VOZES, pela segunda vez em 1969, insiste no problema da Comunicação. É a primeira revista no país a dedicar um número monográfico à história em quadrinhos. É uma tentativa na linha de compreender a cultura de massa. As duas revoluções industriais acabaram com a obra-prima. 
Se a arte pequeno-burguesa subsiste é devido às contradições históricas do sistema. Os profetas de hoje, profetizando o amanhã, afirmam o estado de coma da literatura de academia, da pintura de galeria, da música bem como do artesanato objetal. É certa uma coisa: os processos de produção são impiedosos. Há todo um questionamento autofágico e, dialeticamente, há um alvorecer ainda sem nome de uma cultura para consumo planetarizado. 
É neste contexto de vanguarda que surge a necessidade de se dimensionar o quadrinho. 


Maurício de Sousa: Uma vitória do quadrinho brasileiro.

Em 1962 surgiu um desenho novo  nas páginas da "Folha ele S. Paulo", assinado par um desconhecido: Maurício. De lá para cá, 7 anos de sucesso e progresso.

Sucesso porque, hoje, os bonecos de Mauricio são vistos diariamente por mais de 3 milhões de pessoas, em S. Paulo e interior paulista. Aos domingos seu público aumenta duas ou três vezes. Seus bonecos são veiculados por suplementos infantis, produzidos pela "Maurício de Sousa Produções", em 45 cidades, inclusive nas distantes Teresina (PI), e Erexim (RS). A Trol vai Industrializar seus bonecos. As propagandas feitas com seus bonecos estão na frente das pesquisas da Gallup (a Mônica colocando um elefante na panela). Mais do que o sucesso o progresso. O traçado de Maurício se aprimora. Apareceram outros bonecos e heróis, alguns muito populares, principalmente no público infantil. O texto que publicamos a seguir são tópicos de uma entrevista concedida no dia 16 de maio, p. p., em S. Paulo.

REVISTA VOZES - Maurício, po­deria dizer aos leitores de Vozes, os motivos e os dados marcantes de sua vida como criador de histórias em quadrinhos? 

MAURÍCIO DE SOUSA - Sem­pre gostei de desenho. Desde rapaz, sempre achei também que fazia fal­ta a história em quadrinhos brasi­leira, feita em casa, com motivos nossos e com espírito nosso. Não é xenofobia, mas falta alguma coi­sa no gênero por aqui. Então des­de que mudei para S. Paulo co­mecei a desenhá-la.

RV - Você é de onde mesmo? 

MS - De Mogi das Cruzes (SP), 33 anos, casado, três filhas. 

RV - Uma delas a Mônica, não é? As outras não ficam com inveja? 

MS - Não. Também as outras aparecem nas histórias. A Magali, comilona, é uma das meninas. A Maria Cebolinha, irmã do Ceboli­nha, também é minha filha. As três estão nas histórias, mas vivem se queixando que a Mônica aparece mais: "Pai, joga eu mais na historinha! É... só a Mônica, né?"

RV - Voltando ao assunto... 

MS - Bem, desde o interior ten­tei fazer história em quadrinho. Logicamente não consegui, não havia condições. Fazia apenas algumas ilustrações para o jornal local. Vim para S. Paulo com 18 anos, pas­tinha de desenho debaixo do bra­ço, como todo o mundo que vem tentar aqui ser desenhista. Não con­segui me colocar, é lógico; meu de­senho era de fato sofrível. Fui trabalhar na reportagem da Folha de S. Paulo, reportagem policial, onde aprendi a escrever numa lin­guagem enxuta, objetiva, mais po­pular e adequada para a história em quadrinho. Depois uni o aprendiza­do de escrever bem enxuto ao desenho da história em quadrinho, de­senho que eu já fazia melhor. Criei então as primeiras histórias para o jornal. Primeiro, o Bidu, há uns 7 anos atrás, meus colegas de re­portagem me auxiliavam bastante, inclusive evitando que eu fosse fu­rado enquanto fazia as primeiras histórias, lá mesmo no Departamento de In­vestigação, na Polícia, onde eu fa­zia plantão. Depois vieram os ou­tros bonecos. Nessa época (1963) a Folha de S. Paulo pensou em lançar um suplemento infantil, a Folhinha. Neste suplemento lancei o Horácio e mais outros persona­gens. Tornei-me de repente muito conhecido.

Uma Equipe contra o Truste Americano 

Nesta ocasião eu já estava prati­camente montando a minha equipe e estava formando os primeiros ele­mentos. Era possível a criação e a distribuição de mais de 2 ou 3 histórias. Foi quando foi criada a maioria de nossos personagens (Mônica, Magali, Cebolinha, Ma­ria Cebolinha, Bidu, Franjinha, Flo­quinho, Horácio, Chico Bento etc.) que atualmente estão em diversos jornais de S. Paulo: além da Fo­lha de S. Paulo, o Diário da Noi­te, Diário de S. Paulo, Diário Po­pular, Jornal da Tarde (O Estado de S. Paulo). No começo foi duro. Tínhamos de escrever a história de madrugada, desenhar de manhã e vender de tarde. Além disso que­brar o tabu da história em quadri­nhos brasileira. Os jornais, os di­retores de jornais, não acreditavam que o público aceitasse as histórias brasileiras. Não acreditavam tam­bém que os desenhistas brasileiros aguentassem manter a história no jornal. Em alguns lugares onde eu não me identificava, o pessoal di­zia que só aceitava história ameri­cana. Foi um dos motivos porque nossa primeiras histórias não eram tipicamente brasileiras. Eram assim meio universais. Não havia nelas ambiente brasileiro, não havia detalhes que as identificassem como uma produção brasileira. O pessoal estava digerindo material americano há 30 anos, acostumado de tal forma, que não aceitavam material diferente. Depois que os bonecos da Folhinha pegaram, nós começa­mos a criar alguma coisa mais re­gional. Hoje, por exemplo, temos o Chico Bento. É a história mais divulgada e mais vendida no Bra­sil. É o caboclinho, caipirinha de pé no chão, um jeca tatuzinho, que diz muita coisa séria.

Um Pouco de História das Histórias em Quadrinhos

RV - Gostaríamos de saber, ao nível de seu trabalho de pesquisa, o que Você aponta como mais relevante na história dos desenhos de quadrinho brasileiros, desde o Ti­co-Tico, em 1905.

MS - O Tico-Tico acostumou o pessoal aqui a ter uma publica­ção dirigida à infância. Durante 30 anos, só houve isso e não houve muita renovação, tanto que o Tico-­Tico acabou. Acho que em termos de história em quadrinhos no Bra­sil, o fato mais importante foi o lançamento do Suplemento Juvenil, do Adolfo Aizen. Os americanos en­traram então no mercado. O Su­plemento acostumou o povo juve­nil da época - que hoje, está nos postos de mando - a ler e con­sumir a estória de quadrinhos, co­mo entretenimento, higiene mental, lugar comum muito usado, mas que se dá na realidade. Depois houve várias tentativas corajosas e honestas: Vida Juvenil, Vida Infantil, com algumas histó­rias brasileiras do Joselito, do Jo­sé Geraldo. Depois Ziraldo, com Saci Pererê. Aqui em S. Paulo ti­vemos o Jayme Cortez, o Álvaro Moya e outros desenhistas. Foram corajosos e fundaram movimentos de classe para defender o desenho brasileiro, mas não foram adiante.

RV - E a experiência do Ziraldo, como você a viu?

MS - Ziraldo, no campo da his­tória em quadrinho, é um capítulo à parte. Ele criou uma dimensão nova. O Saci Pererê dele era uma história bem brasileira que o públi­co consumia. Por questões várias, comerciais e industriais, o negócio não foi para frente, não vendia. Aliás, história em quadrinhos não rende. Não é ainda um negócio rentável, a não ser que haja distribuição.

A Evolução 

RV - Você depende dos desenhis­tas internacionais? Um aluno da Escola de Comunicação, do Rio, diz que seu desenho é bem parecido com o traçado de Margie, criadora de Bolinha e Luluzinha. Você, pes­soalmente, tem consciência desta(s) dependência(s), ou a(s) rejeita? 

MS - Ao contrário. Cumprimen­to a pessoa que você menciona. Es­tá perfeitamente certa, tanto mais que você lhe mostrou desenhos meus de 63/64. Não que eu esteja de­pendendo ainda de Margie, mas quando comecei a desenhar era fa­nático pelo Bolinha e pela Luluzi­nha. Lógico, inconscientemente, a gente vai assimilando e fazendo al­go parecido, criando na mesma es­cola. As primeiras histórias, tinha ainda bastante da Margie, ou do espírito da história da Margie, mais do desenvolvimento dinâmico da his­tória do que do desenho propria­mente dito. A personalidade dos bo­necos da Margie influenciaram-me realmente bastante. De uns 4 anos para cá, com outras influências que a gente sofre, fatalmente, fui me divorciando mais e mais.

Quadrinho Brasileiro para Europeus 

RV - Com relação à exposição de Lucca (Itália), o que Você viu lá de vanguarda em matéria de quadrinho? E para Você e para o desenho brasileiro, que perspec­tivas abriram? 

MS - Na III Exposição Inter­nacional dos fumetti (desenhos em quadrinhos), de Lucca, a expe­riência foi fascinante. É a segun­da vez que vou à exposição de Lucca. Lá a gente se encontra com as várias tendências das histórias em quadrinhos da atualidade. Hou­ve muita discussão, querendo cada qual fazer valer sua escola, e pro­var que determinada tendência é a mais adequada, oferece maior con­tinuidade criadora, ou é mais rece­bida pelo público. Apesar destas discussões todas, na última amos­tra não houve novidades maiores. As novidades revolucionárias do quadrinho ocorreram há uns doi ou três anos, com os lançamentos de estórias como Jodelle, Barbare­lla, Saga de Xam e histórias de non-sense, on­de o desenvolvimento da história fi­ca para o segundo plano, ficando só a preocupação plástica. 

Quanto ao nosso material lá, foi um material que eu considero comercial, para vender e atingir o grande público. Não podemos ainda, de forma alguma, pesquisar e chegar com histórias que o público não entenda. No terreno, por assim dizer café com leite da história em quadrinho, nós agradamos, feliz­mente, a parte mais popular do público. Tanto que estamos com contrato com a Editora Kirk, de Gênova, para lançamento de nos­so material na Itália e depois no resto da Europa. 

RV - Maurício, como Você vê o problema da cultura de massa re­lacionada o com o quadrinho? Gos­taríamos que Você colocasse a fun­ção do quadrinho na comunicação coletiva e dimensionasse isso em termos de Brasil. 

MS - Bem, no tocante à comu­nicação de massa a história em qua­drinho está, segundo os modernos pesquisadores, ao lado do cinema e da televisão. Principalmente no Brasil, onde a grande maioria fre­quentou até o 4º ano primário. Para uma população semi alfa­betizada, quadrinho é importan­te. A história em quadrinho pode perfeitamente ser de uma valia sem tamanho para a divulgação da cul­tura e de uma filosofia de vida bem brasileiras, adequadas às nos­sas condições sócio econômicas. O quadrinho pode ser uma arma fabulosa em favor do espírito brasi­leiro, da nacionalidade e da cultura. 

A função do quadrinho no Bra­sil de hoje, principalmente como nós na Maurício de Sousa Produ­ções estamos fazendo, só vai ser entendida no futuro. Vejamos o que ocorre hoje. A Folhinha de S. Pau­lo segundo o pessoal mesmo da Folha de S. Paulo, ajuda a vender a tiragem de domingo, que é bem maior do que a normal. A Folhinha é motivo de briga nas casas. A criançada quer ler as histórias, par­ticipar dos joguinhos na parte de divertimento. Essa criançada de ho­je vai se acostumar com a Folhi­nha e depois passar a ler a Fo­lhona. Vai ser o futuro público leitor do jornal. Vai se acostumar a ler jornal, coisa que brasileiro adulto não fazia. 

Isto que está acontecendo na Folha de S. Paulo acontece nas de­zenas de cidades, cujos jornais pu­blicam nossos desenhos e encartam nosso suplemento infantil. A crian­çada sabendo que saiu o suplemen­to, vai exigir do pai que traga pa­ra casa determinado jornal. Isto es­tá acontecendo. Jornais estão au­mentando a tiragem - e sabemos porque pedem cada vez maiores remessas de nossos suplementos. Portanto, a criançada de hoje irá ler o jornal de amanhã. Não ficará tão alienada da realidade.

A Concorrência Americana: Parada Difícil 

RV - Como desenhista quais os macetes e complicações profissio­nais que tem de enfrentar um no­vato. E a concorrência com o de­senho estrangeiro? 

MS - o material americano foi até hoje o responsável pelo não aparecimento de desenhistas nacio­nais. Digo, desenhistas nós tive­mos vários, mas hoje estão-se de­dicando à publicidade ou foram pa­ra os Estados Unidos. E’ a ve­lha lei da oferta e procura. A his­tória estrangeira, não só a ame­ricana, mas também a inglesa e al­gumas francesas, chegam aqui a preço de banana. A tira de jornal está custando apenas um dólar. Ora, enquanto isso qualquer desenhista profissionalmente bom, vai sentar à prancheta e desenhar uma tira que custa em homem hora duas ou três vezes mais. Fatalmente ele vai vender para um só jornal porque não temos distribuidoras nem sin­dicatos nos moldes dos sindicatos americanos. A única tentativa apa­recida no Brasil é a nossa redis­tribuidora, aqui na Maurício de Sousa Produções. 

A venda da história em quadri­nho, para um jovem que começa, é difícil. Infelizmente, até eu estou concorrendo com os desenhistas bra­sileiros que estão surgindo por aí. Preciso vender minhas histórias pe­lo preço das histórias americanas, senão não coloco a produção do es­túdio. Por outro lado, estou ten­tando abrir campo e criar condi­ções para que haja necessidade de diversificação do material. Hoje já estamos planejando o lançamento de revistas para as bancas. Vamos aumentar o número de páginas de nossos suplementos em condições tais que poderemos comprar mate­rial dos free-lancers e desenhis­tas que estão em agências de pu­blicidade. Vamos lançar assim no­vos personagens, novos bonecos, e novos desenhistas, independente­mente das restrições editoriais que havia anteriormente. Afinal, somos todos desenhistas. A venda é difí­cil. A independência é relativamen­te difícil. Nossa agência funcionan­do dá para mais dez ou doze de­senhistas viverem exclusivamente de histórias em quadrinhos. Quando houver mais equipes e mais con­dições provavelmente vai haver mais desenhistas de histórias em quadri­nho no Brasil e alguns excelentes estão no forno para sair. 
Enfim, história em quadrinhos no Brasil é uma aventura. Mas é uma aventura gostosa, agradável, e, pa­ra mim, fazer história em quadrinho é higiene mental".

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