terça-feira, 15 de agosto de 2017

André Lê Blanc - Entrevista - 1972

Entrevista concedida a'O Pasquim em março de 1972:
Ziraldo - André Lê Blanc, você nasceu onde?

LÊ BLANC - No Haiti. Mas eu nem me lembro mais como é que era. É muito complicado: minha mãe era francesa, meu pai era de Honduras, e fomos pros EUA muito cedo. Moramos muitos anos nos EUA.

Ziraldo - E depois você veio cá pro Brasil?

LÊ BLANC - Não, eu vim pro Brasil de Cuba. Eu morava em Havana e trabalhava pra um syndicate americano de histórias em quadrinhos. De lá, de Cuba, eu vim pro Brasil a passeio, gostei e fiquei.

Ziraldo - E você já era casado quando veio pra cá?

LÊ BLANC - Eu me casei aqui. Aliás, eu disse errado: eu vim pro Brasil, gostei, casei e fiquei. Minha mulher, Elvira, é brasileira. (1)

Ziraldo - E quando foi que você veio?

LÊ BLANC - Em 1944.

Fortuna - E quando é que você foi dos EUA pra Cuba?

LÊ BLANC - Bem, eu fui pra Cuba porque meu pai tinha umas terras lá - meu pai morreu em Cuba - ele tinha terras de café e açúcar. Eu fui pra lá tomar conta das terras dele. Aí eu cheguei, tratei dos problemas, vendi aquela porcariada toda, gostei e fiquei.

Ziraldo - E como era a sua vida em Cuba nessa época?

LÊ BLANC - Ah, eu vivia como um nababo em Havana. Naquela época, Havana tinha o segundo maior padrão de vida da América, logo abaixo dos EUA. Aquilo lá era um paraíso. Era parada obrigatória dos que iam da América Latina pra Europa e dos que vinham da Europa pra cá. Havia intelectuais foragidos, espiões de todas as nacionalidades, nazistas e antinazistas, exilados espanhóis da Guerra Civil. Havana era um centro de espionagem internacional e, também, um centro cultural efervescente. Tudo. Eu mesmo tive aventuras com espiões alemães, argentinos, vejam só! Eu ganhava em dólares e morava no melhor hotel da cidade, o Plaza. Foi nessa época que os americanos e europeus começaram a descobrir o Brasil, através dos filmes de Walt Disney, dos livros de Stefan Zweig. Aquelas coisas todas que diziam do Brasil me impressionaram bastante e me deu vontade de vir pra cá. O engraçado é que, naquela época, eu estava em dúvida. Não sabia se voltava pros EUA ou se vinha pro Brasil. Meus amigos - muitos deles brasileiros que trabalhavam na embaixada - me disseram: Ora, por que voltar pros EUA? Lá não há mais novidades. Poxa, você tem todo um continente novo pra conhecer etc. Aí eu vim pra cá.

Ziraldo - Com muito dinheiro no bolso...

LÊ BLANC - Sim. Cheguei aqui ganhando 180 dólares por semana. Isso, na época da guerra, era muito dinheiro.

Ziraldo - E quanto tempo você ficou aqui?

LÊ BLANC - Até 46. Eu e minha mulher saímos pra passear na Europa. Nessa ocasião eu já fazia Morena Flor. Eu fui pra Europa só pra poder continuar Morena Flor. A verdade é que lá na Itália, depois da guerra, a vida era mais barata que no Brasil.

Sérgio Augusto - Momentinho, só pra tirar uma dúvida, eu sempre pensei que Morena Flor tivesse saído em 49...

LÊ BLANC - Saiu em 47.

Sérgio Augusto - Então, atenção estudiosos dos quadrinhos: corrijam as suas anotações!

LÊ BLANC - Eu gostaria de acrescentar ainda que quem distribuiu Morena Flor foi Luis Rosemberg e que, em 49, o Adolfo Aizen me convidou pra desenhar O Guarani, de José de Alencar.

Ubirajara - Edição Maravilhosa - EBAL

Ziraldo - Lê Blanc, antes de ir pra Cuba, você já era desenhista nos EUA. Agora, o que você fazia e com quem você trabalhava nos EUA antes de 1944?

LÊ BLANC - Bem, o grande movimento das histórias em quadrinhos nos EUA começou em 1938 e eu entrei nisso em 39. Fui trabalhar com Will Eisner. Naquela época ele dividia um estúdio com um sócio, Iger. Eu e muitos outros éramos ajudantes dele. Eisner não tinha só O Espírito. Havia ainda outras histórias, outras tiras que depois ficaram famosas.

Sérgio Augusto - Quais eram essas outras tiras?

LÊ BLANC - Até já me esqueci dos nomes. Faz tanto tempo.

Ziraldo - Quando você foi trabalhar com Eisner ele já havia inventado O Espírito ou você viu ele inventar o personagem ali na sua frente?

LÊ BLANC - Naquela ocasião, ele acabara de inventar O Espírito. No início, eu não fui ajudá-lo a fazer O Espírito porque aquilo era uma obra pessoal, só dele, mas quando, mais tarde, a história foi tomando muito trabalho, eu passei a ajudar. Sabe, ela começou pequena, foi crescendo e chegou a virar um suplemento, distribuído pelo Ledger Syndicate. O Ledger Syndicate pertencia ao Everett Arnold, que era quem lançava as maiores histórias da época. Tudo que é da National Comics hoje, pertencia a Arnold. Só mais tarde que o Donnenfeld comprou aquelas histórias, Arnold lançou tudo: Black Hawk, Submariner, Plastic Man. (2)

Sérgio Augusto - Inclusive esse seu começo coincidiu com o surgimento do primeiro herói de quadrinhos a ter uma revista exclusiva: O Super-Homem.

LÊ BLANC - Coincidiu, exato. Porque, naquela época, os dois rapazes que fizeram O Super-Homem, Joe Shuster e Jerry Siegel, tinham oferecido essa tira a todo mundo e foi Donnenfeld quem aceitou comprar ela. O engraçado é que todo mundo pensa que Shuster e Siegel fïcaram ricos com o Super-Homem, mas não: quem ganhou dinheiro com o Super-Homem foi Donnenfeld. Shuster e Siegel eram meros assalariados!

Ziraldo - E você chegou a desenhar o Super-Homem?

LÊ BLANC - Não, porque eu trabalhava para Arnold. Mais tarde eu desenhei o Capitão Marvel para uma terceira empresa. (3)

Ziraldo - Só o Capitão Marvel ou toda a família?

LÊ BLANC - Só o Capitão Marvel.

Ziraldo - Engraçado, porque o Capitão Marvel tinha aquele corpo de halterofilista e uma cara profundamente caricatural, um negócio inteiramente diferente do seu estilo.

LÊ BLANC - Eu não fazia Capitão Marvel como produto original mas como produto de estúdio, quando se precisava quebrar um galho, qualquer um quebrava, ou na tinta ou no desenho. Era produção em massa, entende? Depois de algum tempo qualquer um podia fazer qualquer coisa.

Sérgio Augusto - Eu queria salientar um troço: embora o Capitão Marvel tenha sido um plágio descarado do Super-Homem - o negócio acabou, inclusive em processo - o Capitão Marvel, tinha muito mais charme que o Super-Homem. Todos os garotos da minha geração eram mais vidrados nele. Como você explica essa preferência?

LÊ BLANC - Capitão Marvel era muito mais simpático. Olha, já na primeira vez que eu desenhei o Capitão Marvel eu achei que ele iria superar o Super-Homem. Ele só não foi pra frente, tanto quanto o Super-Homem, porque quem manejava o Super-Homem era muito mais esperto: era Donnenfeld, o maior negociante da época.

Ziraldo - Não, porque o Capitão Marvel tinha uma ingenuidade e um negócio mágico. SHAZAM, aquela coisas. E a sua dupla personalidade tinha muito mais fascínio. Quem se transformava em Capitão Marvel era o guri, o Billy Batson.
Sérgio Augusto - E no Super-Homem é o contrário. A verdadeira identidade do Super-Homem não é Clark Kent mas o próprio Super-Homem. No Capitão Marvel era o contrário: a verdadeira identidade dele era Billy Batson.

Fortuna - Exato. O Capitão Marvel tinha um apelo humano. Billy Batson se transformava pela mágica. Ele era um ser humano com o qual a gente podia se identificar. E o Super-Homem não é gente. O Clark Kent não é gente.

LÊ BLANC - A criançada americana também gostava mais do Capitão Marvel, mas atrás do Super-Homem havia muito mais dinheiro, muito mais ordem. Olha, o Donnenfeld primeiro roubou o Super-Homem dos desenhistas e passou a explorar o herói em camisas, relógios, bandeiras, brinquedos etc. Os desenhistas não ganharam um tostão com os direitos autorais obtidos com a venda daqueles produtos, nem com os filmes seriados de Super-Homem. Tudo ia pro bolso do Donnenfeld. Os direitos eram dele. Will Eisner teve mais sorte indo trabalhar pro Arnold. Eisner ficou com todos os direitos d’O Espírito.

Ziraldo - Mas O Espirito não chegou a ser um grande sucesso nos EUA, né? Era muito intelectual, elaborado, e só vingou mais tarde, certo?

LÊ BLANC - Sim, era muito intelectual mas também, naquela época, havia outra razão, de ordem econômica. O Espírito era um suplemento que exigia muitas folhas. Cada um tinha 16 páginas. As primeiras 10 ou 12 páginas eram d’O Espírito. Depois eu tinha quatro paginas com Intellectual Amos e um amigo meu tinha outra, chamada Lady Luck.

Ziraldo - Por que todos os grandes heróis dos quadrinhos da época áurea usavam fantasias, roupinhas justas, bolinhas? E por que o público aceitou esses heróis que mais pareciam caras de baile carnavalesco do que figuras humanas?

LÊ BLANC - Porque naquela época, na política, estavam na moda os mascarados, os fantasiados com camisas verdes, pretas, marrons. Era uma época em que cada ideia tinha de ser identificada com uma cor diferente, de fácil identificação, correto? O sujeito que aderia ao nazismo metia uma camisa marrom. Quem era integralista usava uma camisa verde. Havia uma necessidade de se tomar uma identidade comum. E eu tenho a impressão que essa necessidade de se vestir engraçado refletia bem o espírito daquele tempo.

Ziraldo - Você não acha também que o uso de fantasias era uma artimanha dos desenhistas? Sim, porque desenhar roupa justa é mais fácil, e, além disso, a roupa justinha ressalta a musculatura, faz o herói ficar mais potente.
LÊ BLANC - Claro que desenhar roupas justas ressalta a musculatura e é menos complicado pro desenhista.

Fortuna - Essa é uma pergunta que eu sempre quis fazer: de que tecido são feitas essas fantasias dos heróis?

LÊ BLANC - Ah, foram os desenhistas de quadrinhos que inventaram o tergal.

Ziraldo - O engraçado é que o primeiro grande herói dos quadrinhos, Tarzan, andava só de tanga porque era preciso que ele andasse assim. Depois, antes do Flash Gordon, veio o Buck Rogers, que usava aquela roupa justa porque era a mais adequada pra um mocinho do espaço. Depois, veio o Super-Homem, que usava capa e aquele uniforme todo, mas isso era justificável porque ele era um ser de outro planeta. Então, o primeiro herói a se fantasiar realmente foi o Fantasma, sabia? E daí surgiram todos os outros fantasiados: o Homem-Bala, Joel Ciclone, Batman etc. Você não acha que o Fantasma tem a fantasia mais bonita de toda a História dos quadrinhos?

LÊ BLANC - O Fantasma? Não, nunca tinha reparado nisso.

Fortuna - Pode não ser a mais bonita mas é a mais barata: é mescla.

Ziraldo - Voltando ao Eisner. Como é que ele era? Do tipo intelectual?

LÊ BLANC - Sim. Eisner é um rapaz fino. Era mais vivido, com mais preparo intelectual do que todos nós que trabalhávamos com ele no estúdio. Nós éramos jovens, 18, 19 anos. Em tudo o que ele fazia refletia a experiência maior que ele tinha. Nós, não.

Ziraldo - Por que em uma entrevista que ele deu à Playboy, há alguns anos, Eisner falou com profundo tédio d’O Espirito? Ele disse: “Não, eu fazia aquilo de brincadeira; não tenho interesse; não quero mais fazer”. Como se aquilo não fosse um negócio vital pra ele.

LÊ BLANC - O que aconteceu com Eisner e O Espírito foi o mesmo que eu senti quando fiz Morena Flor. No momento em que a gente faz uma história, a gente vibra com tudo, a gente vive aquilo e as personagens passam a ter vida própria.

Quando eu “matei” Morena flor (eu parei com a história porque senão ela ia acabar perdendo a qualidade), durante muitos meses eu andei no vazio, como se uma parte de mim tivesse sido amputada, e Will Eisner não pode negar que não tenha vivido e sofrido com O Espírito. Posso garantir isto porque eu e Eisner trabalhamos juntos, mesa à mesa, aquilo era pensado, suado, agoniado.

Ziraldo - O Eisner foi o primeiro desenhista a ter consciência de que o quadrinho era uma composição artística, não?

LÊ BLANC - Olha, eu ainda não tinha ouvido falar em Chekov em minha vida e Eisner já citava Chekov. Ele estudava arte dramática seriamente pra poder aplicar nos quadrinhos os conhecimentos do teatro.

Fortuna - Mas a característica plástica dele é basicamente cinematográfica.

Ziraldo - Lembra dos pés, das esquinas, das sombras? Pô! Ele era o rei da poça d’água!

Sérgio Augusto - E muito influenciado pelo expressiomsmo alemão. Eisner era o Fritz Lang dos quadrinhos.

Ziraldo - Você, Lê Blanc, aprendeu muito com ele?

LÊ BLANC - Muito. O que eu aprendi de desenho em quadrinho foi com ele. Pena que foi por pouco tempo, porque logo depois eu tive que sair pra trabalhar noutra empresa, que me ofereceu mais dinheiro.

Ziraldo - Você passou a fazer o quê?

LÊ BLANC - Virei free-lancer.

Fortuna - A respeito de Morena Flor: ela não era uma super-heroína e isso, que me lembre, era uma novidade pra época.

Tira de Morena Flor - 1948.

LÊ BLANC - Morena Flor era uma garota muito bonita, cheia de boas intenções, que queria que tudo andasse direito. Bem, depois ela teve de entrar em conflito com o Mal, a lutar contra os caçadores que queriam destruir o ambiente natural, puro, onde ela vivia. Ela era preocupada com a flora e a fauna da Amazônia. Eu abordava temas de ecologia que, naquela época, não existia ainda. Ela não tinha super-poderes. Eu queria uma heroína que fosse bem brasileira, que falasse a linguagem brasileira, uma figura com que qualquer brasileiro pudesse se identificar. Eu procurava fazer com que ela usasse todos os apetrechos comuns da vida brasileira. Eu ficava horas observando tudo que a minha empregada usava e falava, e incluía tudo nas minhas tiras.

Ziraldo - Mas, voltando à sua história: você deixou o Arnold. Foi ser free-lancer e se mandou pra Cuba. Lá em Cuba você trabalhou muito com quadrinhos?

LÊ BLANC - Ah, sim. Foi lá que eu tive a ideia, de repente, do Intellectual Amos, Então mandei a ideia para Arnold. Coincidiu que nessa época havia poucos desenhistas, porque os rapazes estavam todos indo para a guerra. A história de Amos causou surpresa porque Amos era um menino que fora abandonado na porta de uma biblioteca e se criou ali, lendo tudo e se tornou um intelectual. Amos surgiu como um protesto contra os super-heróís. Enquanto o Super-Homem enfrentava os bandidos com socos, Amos enfrentava eles com a inocência da criança e o saber adquirido com a leitura.

Ziraldo - E quanto tempo ela durou?

Intellectual Amos - 1945.

LÊ BLANC - Ela morreu no Brasil. Eu fazia Amos em Havana. Eram quatro páginas por semana. Quando cheguei ao Rio, continuei mandando. Ia por via aérea, extra-rápido e na categoria de manuscrito, de obra de arte, conforme me tinham aconselhado os caras da PANAM, em Havana. Pois bem, as remessas que eu mandei do Brasil chegaram bem. Isto é: até a terceira remessa. A quarta ou a quinta enguiçou na alfândega americana. Arnold foi chamado. Os homens da alfândega perguntaram qual o significado daquela tira, e, depois, disseram que aquilo era matéria paga e estava taxado como arte. E multaram Arnold com mil dólares. Ele ficou desgostoso e acabou.

Ziraldo - Mas você não fez nada pra salvar a história?

LÊ BLANC - Eu poderia ter salvo. Bem, eu cheguei a ir à Panair do Brasil pra pedir instruções. Eles me disseram que se aquilo era comercial - e, de fato, era, pois eu recebia por aquele trabalho - eu teria de vender ao câmbio do Banco do Brasil. Lá no Banco do Brasil me disseram que eu teria de apresentar o cheque. Aí eu respondi que era impossível porque eu só recebia o pagamento depois que Arnold recebia e aprovava as histórias. Depois consegui o Guia de Exportação e me mandaram resolver uma série de probleminhas burocráticos. Cansei.

Ziraldo - Como você conseguiu sobreviver sem Amos, aqui no Brasil?

Lê Blanc em A Cigarra - 1946.

LÊ BLANC - Comecei n’O Cruzeiro. Foi lá, aliás, que conheci o Millôr. Eu ilustrava páginas duplas de contos. Dava pra viver comodamente. Depois veio A Cigarra. E, um dia, me apresentaram ao Monteiro Lobato. Eu fiz todas as capas dos livros dele. Naquela época, havia muitas coisas pra se fazer aqui. Deu até pra eu comprar aquele sítio em Niterói que tenho até hoje.

Lê Blanc ilustra Lobato - Dom Quixote da Crianças - Ed. Brasiliense - 1968.

Ziraldo - Aí você conheceu a Elvira e se casou com ela.

LÊ BLANC - Namoramos quatro meses e casamos.

Ziraldo - E deu certo só com quatro meses de namoro?

LÊ BLANC - Durou 26 anos até agora. Tivemos duas filhas: Frances e Vivian. Uma é americana e a outra brasileira.

Ziraldo - Depois, você viajou pra Índia, não foi?

LÊ BLANC - Viajei pro Oriente pra uma série de 30 e poucas reportagens para O Globo. Fui a Goa. Paquistão, àquela região onde hoje é Bangladesh.

Ziraldo - Quanto tempo?

LÊ BLANC - Uns seis meses. Voltamos depois pela Europa.

Ziraldo - E quando você voltou pros EUA?

LÊ BLANC - Foi em 56. Minha mulher estava com uma complicação na espinha e precisava de um tratamento especial. Nós fomos pros EUA porque lá havia esse tipo de tratamento. Fomos com a ideia de só passarmos seis meses. Acontece que o médico disse que aquele tratamento não era coisa pra seis meses mas pra mais de um ano. Nós tínhamos uma vida ótima aqui. Largamos tudo e fomos ficando até ela melhorar. E logo depois nasceu Vivian. O tratamento deu certo, né?

Ziraldo - E você ficou lá desenhando história em quadrinhos?

LÊ BLANC - Não. Logo que cheguei encontrei uma companhia que publica a Bíblia toda ilustrada. Bem, eles me pediram pra eu ilustrar a Bíblia de ponta à ponta, sozinho. E olha que era um trabalho difícil, cheio de cuidados, eu levei sete anos nisso. Trabalhava todos os dias até às duas horas da madrugada. O mais curioso disso tudo é que os donos da companhia pensavam que eu tinha auxiliares. Eles diziam que eu tinha escravozinhos debaixo da mesa trabalhando pra mim! Eu desenhava quatro páginas por semana. A Bíblia saía em fascículos semanais. Depois, eles juntavam tudo e editavam um livro. Hoje, essa Bíblia vai pro mundo inteiro em 40 línguas.

A Bíblia de Lê Blanc.

Ziraldo - Mas como era esse trabalho?

LÊ BLANC - Eu fazia o desenho original e eles faziam o clichê em preto e branco. Depois, eu fazia uma fotostática onde punha as cores, em aquarela, como quem faz um desenho animado.

Ziraldo - Viu, Fortuna, ele não faz como a gente aqui no Brasil, indicando a cor pro fotógrafo indicar a porcentagem dos pontos. Ele fazia um outro original a cor, só sem o preto.

LÊ BLANC - O preto era considerado a base...

Sérgio Augusto - Coisas do desenvolvimento...

LÊ BLANC - Quando terminei, encontrei uns amigos que ainda estavam metidos com histórias em quadrinhos, como BilI Harris. Aí ele me chamou pra fazer o Mandrake. Eu aceitei desenhar Mandrake porque era o mais simpático. Fiquei dois anos nisso, acumulando Mandrake e a Bíblia.

Ziraldo - Você recebia os originais do próprio Lee Falk?

LÊ BLANC - Não. Nunca tive contato com Falk. Tudo me era dado através da própria King Features.

Ziraldo - O Lee Falk ainda escreve as histórias do Mandrake?

O casamento do Fantasma - desenhos de André Lê Blanc.

LÊ BLANC - Olha, me disseram que ele usa histórias guardadas na gaveta. Pela má qualidade do que me deram pra ilustrar eu acredito nessa versão. Eu tinha a impresso de que as histórias eram todas recolhidas aqui e ali nos arquivos, sem pé nem cabeça. Quando elas chegavam eu tinha que mudar tudo.

Ziraldo - E o Stan Lee?

LÊ BLANC - Eu conheci Stan Lee só nos anos 30. Ele foi um dos pioneiros dos quadrinhos e eu o conheci como um homem de negócios. A gente chegava lá, entregava o material e dizia se gostava ou não. Lembrem-se que foi há 30 anos. Naquela época, ninguém se falava. Todos estavam começando. Ninguém imaginava que o Stan Lee iria virar o que é hoje, entende? Nem mesmo os desenhistas do Super-Homem tinham noção. O tempo é que selecionou, que fez com que os bons se destacassem.

Ziraldo - E o Al Capp? (4)

LÊ BLANC - Não conheci.

Ziraldo - E o Hogarth? (5)

LÊ BLANC - Muito por alto. A gente se encontrava na hora do chá.

Ziraldo - Quando eu era garoto e queria ser desenhista de história em quadrinhos, era vidrado nos décors. Então eu tinha que fazer uma floresta: ou fazia matas e paisagens parecidas com as do Hogarth ou fazia matas e paisagens iguais com as de Morena Flor. O Fortuna se lembra disso porque foi no tempo do Sesinho. Eu fazia uma história passada no mato - Teleco - só pra desenhar os matos como o André Lê Blanc desenhava.

LÊ BLANC - Oh! Muito obrigado.

Sergio Augusto - E Jules Feiffer? (6)

LÊ BLANC - Feiffer havia trabalhado no estúdio onde Eisner e Iger trabalhavam, entrei logo depois que Feiffer saiu. Ele não era um grande desenhista e tinha grandes aspirações intelectuais. Acho que foi por isso que escolheu mesmo o cartum, o tipo de cartum que ele faz, onde o texto é mais importante.

Ziraldo - Três perguntas: por que você voltou ao Brasil? quais os seus planos? e quais as possibilidades das histórias em quadrinhos no Brasil?

LÊ BLANC - Eu voltei porque deixei um pedaço do meu coração aqui. Minhas filhas chegaram a uma idade crucial, de estudos mais desenvolvidos, secundário, faculdade, entende? E eu queria que elas completassem esses estudos no Brasil a a fim de que pudessem ter um conhecimento pleno das duas línguas, o inglês e o português. Além disso, achei que elas deviam se integrar na vida brasileira porque aqui, acho, elas têm mais facilidades, e uma coisa importantíssima: a joie de vivre do brasileiro. Olha, eu posso dizer que aproveitei as coisas boas dos EUA e do Brasil. Quanto aos planos, pretendo achar um modo de ganhar o suficiente pra viver com um mínimo de conforto. Posso dizer também que agora é definitivo. Não gostaria de deixar o Brasil outra vez. Eu me adapto bem às situações. Claro que ainda estou sondando o ambiente...

Sérgio Augusto - Convém informar aos leitores que Adolfo Aizen acaba de convidar o Lê Blanc pra ilustrar um álbum sobre Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire.

Ziraldo - E as possibilidades dos quadrinhos no Brasil?

LÊ BLANC - Não sei, Ziraldo. Sinceramente, não sei.

Ziraldo - Então faz um favor pra gente: vê se arranja com o Will Eisner os direitos pr’O PASQUIM publicar todas as histórias d’O Espirito, tá?

LÊ BLANC - Eu vou falar com Eisner. Prometo fazer um acordo de pai pra filho, ok?


  • (1) Elvira Lê Blanc: incentivadora das artes plásticas. Foi uma dos fundadoras, com Niomar Muniz Sodré, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
  • (2) Lê Blanc refere-se a Blackhawk, chamado de Falcão Negro ou Os Falcões na EBAL, algumas HQs da Quality foram compradas pela DC, mas não tudo. Submariner (Namor, O Príncipe Submarino), criado por Bill Everett, lançado pelo Marvel Mystery Comics (novembro de 39), mais tarde desenvolvido por Stan Lee e R. Thomas, com desenhos de D. Adkins e M. Severin. Plastic Man (O Homem Borracha), de Jack Cole.
  • (3) Capitão Marvel: criação de Earl Camp; Otto Bínder (texto) e C.C. Beck (desenho). Lançado pelo Whiz Comics (37).
  • (4) Al Capp: autor de Ferdinando (Li’l Abner), lançado no New York Mirror, a 13 de agosto de 1934.
  • (5) Burne Hogarth, também conhecido como “o Miguel Angelo dos quadrinhos”, desenhista de Tarzan de 1937 (substituindo Harold Foster, que foi criar o Príncipe Valente) a 1950. Autor também de Drago (1945-47) e Miracle Jones (1948-49).
  • (6) Jules Feiffer: um dos maiores cartunistas americanos. Faz cartuns semanais para o jornal The Vilage Voice. Além de autor teatral e, recentemente, roteirista de cinema (Os Pequenos Assassinatos, Carnal Knowledge), publicou os seguintes livros: Sick, Sick, Sick; Passionella and Other Stories: The Explainers; Boy, Girl. Boy, Girl; Hold me; Feiffer’s Álbum: The Unexpurgated Memoirs of Bernard Mergendeiler; Harry the Rat with Women.

Nenhum comentário: