Brasil, Urgente foi um semanário lançado pela editora Veritas em 1963. Com direção de Roberto Freire era um jornal de caráter progressista e que veiculava notícias de cunho social. Legalista, apoiava a presidência de João Goulart. Em uma de suas edições veiculou a matéria abaixo. Apesar de um pouco datada, mostra bem o clima turbulento do período e a luta sempre presente do quadrinhista nacional por espaço nas publicações brasileiras, além de falar bastante da lei de nacionalização dos quadrinhos discutida na época e os tipos de propostas que estavam sendo cogitadas a esse respeito. Leiam a seguir:
A NACIONALIZAÇÃO DOS SUPER-HOMENS - ZÉ CARIOCA E MICKEY TAMBÉM LEVAM DIVISAS
Os editores das 180 revistas de histórias em quadrinhos que circulam no Brasil vão ter que despedir 60% dos seus heróis importados: até janeiro de 1966 dois terços das historietas devem ser nacionais.
Reagindo conta o decreto de nacionalização das historietas, editores estão preparando o relançamento de velhas histórias nacionais já pagas e já publicadas há muitos anos.
DÓLAR VAI
A tira diária de uma história em quadros custa atualmente um dólar. A história já se pagou é já deu muito lucro em seu país. As cópias são então distribuídas para o mundo e continuam rendendo dólares. E até bem pouco tempo o desenhista nacional não conseguia colocar suas historietas nos jornais nacionais: as editoras davam preferência às historietas importadas, por serem muito mais baratas.
IDEOLOGIA VEM
As histórias importadas apresentam situações totalmente diversas das existentes no Brasil. E muitas delas estão impregnadas de ideologia, de propaganda, de filosofia materialista de sexo e de banditismo.
Uma das tiras divulgadas no Brasil é a do personagem Steve Canyon desenhada por Milton Caniff. Essa historieta é financiada pelo Departamento de Estado norte-americano para divulgar propaganda favorável aos Estados Unidos. Mas no Brasil não é publicada de graça: custa o mesmo dólar que as outras.
O DESENHISTA
O desenhista nacional é considerado pelas próprias editoras como capaz de produzir boas histórias, bem desenhadas. Muitas empresas empregam elementos brasileiros como desenhistas de histórias que saem com assinaturas de estrangeiros. A revista Fantasma foi durante algum tempo inteiramente produzida por um funcionário da O Cruzeiro, o desenhista Getúlio (Delphim).
Em São Paulo, a Editora Abril tem sob contrato o desenhista (Waldyr) Igayara, que refaz desenhos para Pato Donald e Zé Carioca. Inicialmente, quando do lançamento desta segunda revista, a Abril tinha um argumentista e a história era produzida e desenhado no Brasil. Nesse periodo Zé Carioca aparecia jogando futebol e andando nas ruas de São Paulo. O argumentista, porém, demitiu-se da empresa. Em lugar de contratar outro, a Abril passou a comprar nos Estados Unidos historietas do Camundongo Mickey e o desenhista Igayara desenha o Zé Carioca e o cola por cima do personagem original. Para fazer isso a Abril paga royalties dobrados à Walter Disney Production: pela história e pelo uso do personagem Zé Carioca. Nenhuma adaptação é feita na historieta: o Zé Carioca joga beisebol e masca chicletes. Para os sobrinhos do Mickey (dois ratinhos qua acompanham quase todas as aventuras do camundongo) Igayara criou dois pequenos papagaios.
HISTÓRIA
Há 10 anos os desenhistas nacionais vêm tentando conseguir do governo medidas de proteção às historietas brasileiras. O primeiro movimento coletivo nesse sentido foi lançado em 1952 com a fundação da Associação Paulista de Desenho, integrada por Reinaldo de Oliveira, Álvaro Moya, Jayme Cortez e Miguel Penteado. Um dos objetivos da Associação era conseguir que o desenhista ganhasse em cada exemplar vendido (inclusive o desenhista de capa de livros: o escritor ganha em cada exemplar vendido e o capista recebe apenas uma vez).
CONCORRÊNCIA
A criação de uma consciência nacional e o surgimento de bons desenhistas e argumentistas levou alguns jornais a comprar historietas de autores brasileiros. Eles tiveram que vender a preço vil suas histórias porque os jornais argumentavam principalmente com o preço do dumping das historietas norte-americanas. A alta do dólar melhorou um pouco a situação dos nacionais mas eles não tem condições de enfrentar a concorrência estrangeira, que inclusive dá histórias ruins para a publicação gratuíta (A Gazeta de São Paulo publicou durante algum tempo três tiras que o King Features lhe forneceu gratuitamente). Há ainda a instituição do “envelope”: para o comprador de um certo número de histórias o distribuidor norte-americano fornece um envelope com piadas, curiosidades e outras historietas (Pafúncio e Marocas foram fornecidos algum tempo dentro do “envelope”).
A solução era a nacionalização. O Ministro da Educação estudou o problema e o encaminhou, na gestão do ministro Paulo de Tarso ao presidente da República. O próprio Ministério da Educação está atualmente cuidando de organizar os desenhistas para o fornecimento das historietas. Em São Paulo, Reinaldo de Oliveira, um dos maiores conhecedores de histórias em quadrinhos no Brasil, foi indicado ao ministro Paulo de Tarso para organizar a classe.
PIONEIRO
Uma editora de São Paulo especializou-se na publicação de histórias de autores excisuivamente nacionais (o que ajudou à criação da ADESP): a Editora Outubro, em sua primeira fase, quando era dirigida por Miguel Penteado, ex-diretor da Associação Paulista de Desenho. A Outubro foi pioneira no Brasil: editava 40 revistas de historietas totalmente nacionais. A Associação fechou suas portas sem ter conseguido seus objectivos.
ADESP
Em 1961 a idéia renasceu e os desenhistas de São Paulo criaram a Associação dos Desenhistas do Estado de São Paulo. Eles elaboraram um plano de fornecimento de histórias para pequenos jornais do Interior do Estado encaminhando os clichês das histórias (poucas cidades têm clicheria) e recebendo-os ao final da publicação. Esses mesmos clichês seriam então encaminhados a outros jornais e a mesma história poderia ser vendida várias vezes. Divergências internas e o envolvimento de seu presidente pelo King Feature Syndicate (distribuidor da maioria das histórias americanas no Brasil) fizeram com que a segunda associação de desenhistas paulistas também fechasse. Antes, porém os desenhistas iniciaram um movimento de nacionalização, tendo o sr. Jânio Quadros renunciado em vésperas de assinar o decreto (que já estava pronto).
O GRUPO DO SUL
Durante o funcionamento da ADESP um grupo de desenhistas foi contratado pelo sr. Leonel Brizola para produzir revistas com historietas nacionais no Rio Grande do Sul (CETPA). Organizados por José Geraldo os desenhistas produziram algumas revistas mas tiveram que enfrentar a reação dos distribuidores estrangeiros e a falta de compreensão dos propietários de jornais. O grupo do Rio Grande do Sul está ainda na fase de destruição, fazendo historietas que ironizam as historietas norte-americanas. Algumas coisas boas foram lançadas no Rio Grande do Sul: a revista Aba Larga é uma delas.
DESINTERESSE
Os diretores de jornais são descrentes (e também desinteressados): a maioria deles não compra historietas brasileiras porque não acreditam que possam ser boas. Essa atitude, típica de país subdesenvolvido, é fortalecida pela inconstância de alguns desenhistas que, pressionados por necessidades financeiras, são obrigados a interromper a historieta para ganhar alguma coisa em bicos de menor importância mas de paga maior. Além disso, há o temor de desagradar ao distribuidor norte-americano, que pode passar a dar preferência aos concorrentes (os grandes distribuidores mantêm cronistas, colunistas, distribuem fotos e reportagens curiosas).
O BOM
Muitas das historietas norte-americanas publicadas no Brasil são feitas por excelentes desenhistas e argumentistas. A melhor delas é Ferdinando, de Al Capp. Essa historieta ironiza o “american way of life”: os Buscapé são dominados pela mãe (o matriarcado americano); a luta por um marido, no estilo “agarre seu homem”, aparece durante a corrida de Maria Cebola; o herói é bonito e burro, como na maioria das fitas românticas norte-americanas. O materialismo capitalista também é ironizado. Al Capp mantém uma posição de equidistância: em suas historietas há também críticas às deficiências do comunismo, numa dessas historietas o personagem é levado a explicar porque há favelas nos Estados Unidos e belíssimos presídios; ele esclarece: os presídios são para prender os criminosos que surgem nas favelas.
Na mesma história o aparelho em que Ferdinando está sobrevoa a fronteira da Rússia: há duas linhas de guardas, uma com a frente para o país, outra de costas. Ferdinando explica: uns estão de costas para não deixar ninguém entrar, outros estão de frente para não deixar ninguém sair.
O decreto de nacionalização permitirá que fiquem as boas histórias e as ruins sejam substituídas por historietas nacionais.
O QUE SE FAZ
Além do grupo do Sul, remanescentes da ADESP já estão fornecendo historietas para jornais nacionais. Mauricio de Sousa é o que mais produz, mas suas historietas demonstram forte influência americana: Bolinha e Luluzinha, Brucutu e Ferdinando e um personagem da revista Pingo de Gente, (Porquinho, o menino que não toma banho é idêntico ao Cascão, do Cebolinha). Outras fornecem historietas para o jornal A Nação, mas em todos a influência norte-americana é muito forte: os personagens vivem no Brasil mas agem como meninos americanos. Verdadeiramente nacional é o Pererê e sua turma, todos saídos do folclore e das histórias de índio.
A FOTONOVELA
Um aspecto deixou de ser focalizado no decreto de Nacionalização: as fotonovelas. A revista de maior circulação no Brasil é uma revista de fotonovelas italianas e argentinas: Capricho. Essas histórias são geralmente primárias e deseducadoras. Um novo decreto viria solucionar esse problema, inclusive com a orientação direta do Ministério da Educação na produção das fotonovelas nacionais, que podem ser bem feita (há exemplos: uma revista de fotonovelas publicou O Morro dos Ventos Uivantes, com fotografias e cenários bem cuidados).
Um comentário:
Esse é um dos melhores blogs sobre quadrinhos de toda a internet brasileira. Obrigado pelo ótimo trabalho, Luigi!
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