segunda-feira, 26 de junho de 2017

Carlos Estevão - Entrevista - 1972

Matéria publicada no Almanaque Humordaz, nº 2 - julho de 1976

Carlos Estevão, mineiro honorário, sempre curtiu Belo Horizonte e sua vida noturna. Era frequentador dos bares do Maleta, onde esbanjava vltalidade e humor. Essa foi a sua última entrevista, concedida ao Procópio e ao Geraldo Magalhães, ambos da editora Humordaz. Foi publicada no Diário da Tarde de 4 de março de 1972.

Quem quiser saber idade, local de nasci­mento, ou qualquer outra coisa de Carlos Estevão não precisa ir à polícia: basta consul­tar a Grande Enciclopédia Delta Larousse e outras menos votadas. 

E para começar, dois furos de reportagem: primeiro, Carlos Estevão não é carioca; segun­do, mora em Belo Horizonte, como quase todo mundo sabe. Pícnico (vá ao dicionário). E como todo pícnico, extremamente ciclotímico (volte lá, se for preciso), com predominância das fases maníacas. Um homem alegre, enfim, sem precisar de dicionário. E muito lúcido, embora não seja louco. Não vê televisão. Nem teatro, nem exposição, nem badalação. Refugia-se no seu estúdio, onde há pilhas de livros e de cartuns. E pilhas de pilhas (seu passatempo predileto é inventar aparelhinhos elétricos). 
Numa noite destas, bancamos o amigo da onça e interrompemos o sossego do alegre humorista para fazermos uma série de pergun­tas inocentes.

• Carlos, os intelectuais acusam você de fazer um humor muito popular, pouco sofistica­do. O que acha disso? 

• Procuro fazer um humor risível. Isto é importante para mim: que o humor seja risível. Não tenho pretensões intelectuais e não quero ser um Bernard Shaw brasileiro.

• Sua revolta contra a sociedade de consu­mo transparece nos seus desenhos? 

• Pode até aparecer, mas não estou preo­cupado com isso, não. Não consigo ser agres­sivo porque olho muito o lado humano das coisas e das pessoas. Não faço crítica direcional. Posso criticar uma situação geral, sem especificar, sem citar nomes. Olha, eu quero atualmente é um pouco de sossego, uma certa marginalização. Assistir de camarote os atletas se digladiando, correndo para ver quem vence na vida. Por exemplo: não gosto do tipo de humor do "Pasquim". O pessoal é excelente, conheço quase todos, são meus amigos. Mas eles fazem um humor muito agressivo, citam nomes etc. Sei lá, todo mundo é humano e tem suas falhas... 

• A pergunta tem de ser desculpada: você se sente realizado no humor?

• Infelizmente, não. Acabo de comemorar o meu cinquentenário: Nessa altura, realizando um balanço de tudo o que fiz e que sou, tenho a sensação de que, apesar da fama, apesar de ser um nome nacional, não era bem isso o que queria. Desejava não ter me envolvido, não ter participado desta competição pela vida, dessa escravidão determinada por obrigações e im­postos. Procuro uma vida livre, desvinculada de compromissos. Fazer o que eu gosto e quando quero. As coisas simples, atualmente, são as que me atraem. 

• De certa forma, você sempre foi livre. Fez o humor que quis, apesar das críticas, nunca pertenceu a nenhuma patota... 

• Realmente, nunca frequentei nenhuma panelinha. Mas tive que enfrentar a famosa luta pela vida. Veja um exemplo. Se você vai fazer uma caçada, mata uma paca, arrasta e corta, cozinha e come a paca, isto lhe dá um prazer imenso. Agora, se você vai a um concurso de caça, para ver quem consegue matar a paca maior, mesmo que seja a sua a vencedora, não há prazer nenhum nisto, ou, se há, já está contaminado. Já houve competição, pressão de grupo, obrigação.

• Mas essa vida livre de compromissos, dirigida em busca do prazer, tem muito de comum com a filosofia hippie. Você é do lado deles? 

• Acho a filosofia deles muito bonita, real­mente. Mas entre doutrina e maneira concreta de viver há sempre muita diferença. 

• Carlos, seu estúdio é uma esculhamba­ção genial. Pra que tanta coisa assim? 

• Olha, eu raramente saio de casa. Como não gosto de Flávio Cavalcante e essas coisas, deixo a família vendo a televisão lá embaixo e me refugio nesse cantinho. Aqui, faço de tudo. Conserto ferro elétrico, invento acendedores, gravo imitações, ouço música clássica e tango. Aqui eu conquisto um pouquinho daquela li­berdade de fazer o que quero sem sofrer restrições. 

• Deixando de lado os projetos elétricos você tem algum projeto vital? 

• Olha, o ideal da vida é fazer o que a gente gosta. A maioria dos cachaceiros debruçados nas mesas dos botequins tem dois problemas: o corno da mulher desonesta ou o corno da frustração profissional. Eu ainda quero fazer pintura. Já conversei com o Inimá (de Paula) e qualquer dia destes nós vamos sair pintando por aí. Estive observando... Já perceberam que as crianças e os animais são felizes? E por quê? Por causa do imediatismo de sua vida, da inconsequência. Eles não pensam no futuro, não planejam, vivem o dia de hoje e são felizes. Sei lá, eu queria ser criança...

• Você falava em pintura e passou a falar em infância. Alguma relação entre as duas coisas? 

• Talvez, sim. Quando menino, em Recife, todo mundo dizia que eu pintava bem. Fui para o Rio me aperfeiçoar. Primeiro, fui morar em Niterói, depois na Ilha do Governador. Dali criei coragem para enfrentar o centro da cida­de. Naquela época não tinha ainda humorismo estruturado. Eu era histriônico, gostava de ver as coisas pelo seu lado grotesco. Resolvi, então, fazer caricatura. Depois virei humorista, e o ideal de pintor ficou reprimido. Agora eu quero voltar à infância, o que equivaleria voltar a ser pintor. Mas isso aí é coisa para psicana­lista (e mostra uma charge onde um analista, fazendo anotações, diz distraído: Vou elimi­nar em pouco tempo essa sua cleptomania, enquanto o cliente está saindo e levando o divã e várias peças do consultório). 

• Olhando essas charges, estamos lem­brando de uma coisa: você lançou uma revista Dr. Macarra no início da década de 60. Você desenhava tudo aquilo sozinho ou tinha uma equipe? 

• Era tudo sozinho. Inclusive os textos. E havia textos longos, como os das aventuras de Sharleck Halmes. Tive que estudar atentamen­te a geografia londrina e conhecer a fundo a obra de Conan Doyle para não dar mancada. Uma farra ... A revista durou nove números e chegou perto de cem mil exemplares por semana... 

• Você vê alguma relação entre o Fradi­nho, do Henfil e o Amigo da Onça

• Ah, é claro. Os dois vivem fazendo safadeza e maldade. Aliás, o sadismo no hu­mor não é descoberta recente. É universal e intemporal. Veja Voltaire, por exemplo. O cara bom não faz sucesso. Acredito pouco no Je­remias, do Ziraldo, em termos de aceitação popular. O indivíduo bom não é engraçado. Aliás, gostei muito das considerações sobre a bondade que o Ziraldo faz no livro do "Jere­mias". 

Ficamos um tempo a examinar suas velhas charges, a revirar seu estúdio. Foi na saída que ele disse: 

• Uma revista japonesa, a "PHP", me encomendou algumas charges, há vários me­ses, e até hoje não mandei. Mas essa semana eu mando. Querem saber de uma coisa: vou mandar essa noite mesmo.

A reportagem a seguir foi publicada no jornal Última Hora em 1964, na coluna O Capitão, editada pelo cartunista Jaguar.

QUEM

CARLOS ESTEVÃO de Souza, 41 anos, Pernambucano. Inconfundivelmente mineiro, 93 quilos, um dos maiores humoristas brasileiros. o maior contador de piadas de fanho do Brasil. Como outros desenhistas de humor, é muito parecido com seus próprios bonecos. Estreou em 1946 no "Jornal da Moças", ilustrações românticas (abaixo). Em seguida foi para "O Cruzeiro", como ilustrador (a sério) das crônicas de Austragésilo de Athayde, o que já revelava seu senso de humor. Durante anos publicou charge diária no "Diário da Noite", onde lançou um suplemento de humor, "A Fralda" (a bandeira dos pequeninos) onde colaboraram Fortuna, Roland e outros cobras. Saíram sete números. Carreira mais longa teve "Dr. Macarra" (nove números) que terminou estafa total (não dos leitores) mas de Estevão, que era o faz tudo na revista: texto, desenhos e paginações. Criador de seções famosas no "O Cruzeiro": "Perguntas Inocentes", "Acredite Querendo" etc. É citado com destaque em "El Dibujo Humoristico", editado em Barcelona.

ESTÁ
atualmente morando em Belo Horizonte, onde colabora no "Diário de Minas" e leciona Artes Gráficas na Escola de Arquitetura de Minas Gerais. É quase atração turística na Capital; mineira; pode ser encontrado no "Bucheco", barzinho cheio de bossas, com música de Bach e tudo mais. Está organizando dois livros: um sobre o Dr. Macarra e outro de caricaturas sobre gente de Belo Horizonte, em edição de luxo, antecedido por uma exposição na AMAP. Nas horas vagas faz esculturas de pedra sabão, pinte (sob orientação de Inimá) e faz amigos, o que é sua maior especialidade.

FALANDO
"Sou contra humor hermético. Humor é para o povo" - "Tive um cachorro chamado Fernando Limonta, que até apareceu na TV" - "Meus temas prediletos: política e dramas conjugais" - "Há um tabu aqui no Brasil contra a publicação de livros de humor. A esse respeito, nossos editores têm uma mentalidade medieval" - "Certa vez comprei um carro com placa de praça e durante duas semanas trabalhei como chofer de táxi. Foi muito divertido" - "Uma revista de humor, se for bem feita e melhor administrada, pode se manter exclusivamente na base da venda em banca e ainda ser um bom negócio" - "Minha técnica de criação? Fixo-me num tema, como um caçador de tocaia, até surgir a piada".

Um comentário:

Roger disse...

Grande entrevista, material muito bom!
Parabéns!

Roger