Em 1982, o Jornal do Brasil (RJ) reformula sua página de quadrinhos iserindo dez tiras nacionais. Por ocasião dessa modificação, publica a matéria a seguir:
A VEZ DO QUADRINHO BRASILEIRO CHEGOU
Jornal do Brasil - 19.09.1982
Um velho sonho dos desenhistas brasileiros de histórias em quadrinhos - um espaço só seu na grande imprensa do país - começa a se relizar amanhã, no JORNAL do BRASIL. Dez das 20 tiras que o Caderno B passa a publicar todos os dias, de segunda a sábado, serão deles, seus personagens, suas aventuras.
São 11 desenhistas, com idades que variam de 22 (Hubert) a 47 anos no mês que vem (Maurício de Sousa), procedências várias, estilos diversos, mas unidos não só pelo amor à sua arte, "Uma arte que pode ser vista como uma forma moderna de fazer literatura", segundo Bruno Liberati: "como também por uma espécie de compromisso com a realidade brasileira".
Os 11 desenhistas concordam justamente neste ponto: qualquer que seia o seu personagem, um Pato, um Arlindo, um doutor Baixada, um Zarzan, suas histórias têm tudo a ver com uma realidade nossa, política, economia, hábitos, modismos, cultura.
Este tem sido, aliás, o papel da história em quadrinhos em todo o mundo, segundo a maioria dos desenhistas brasileiros, que começam agora a ganhar o seu espaço. Os heróis americanos, por exemplo, sejam antigos como a órfa Aninha, seja atual como o trintão Charlie Brown, sempre refletiram o espírito, os hábitos, a própria realidade da sociedade em que foram criados. Por isso muitos deles não foram compreendidos no Brasil.
Das 10 tiras que serão publicadas no Caderno B, a partir de amanhã, duas já são familiares aos leitores: As Cobras e Vereda Tropical. Como autor da primeira, Luiz Fernando Veríssimo, gaúcho, 46 anos, já era dono de um dos melhores textos de humor da imprenssa brasileira quando começou a se dedicar também aos quadrinhos. Diz ele: Acho que tenho valor como desenhista porque trabalho com uma desvantagem que a maioria dos outros não tem: não sei desenhar. Sempre gostei de quadrinhos e quando me vi com um espaço no Zero Hora, de Porto Alegre, para encher diariamente, comecei a recorrer ao desenho, além do texto.
Veríssimo, criador das cobras que conversam sobre tudo, inclusive (ou principalmente política, opina: Esta de encher uma página com brasileiros eu acho formidável. E uma conquista de espaço que estava demorando. Nada contra os estrangeiros. Não acho que se deva defender o que é nosso na base da xenofobia, ou só porque é nosso. O triste era saber que existia um monte de gente de talento aí sem oportunidade de publicar suas tiras por causa do quase monopólio dos estrangeiros, determinado por motivos econômicos. Estou batendo palmas. As cobras, se tivessem mãos, fariam o mesmo.
Vereda Tropical, do mineiro de Esmeralda. Ernani Diniz Lucas, o Nani, 31 anos, há 10 desenhando, fazendo charges, vivendo do seu traço, é outra história já conhecida dos leitores. Recentemente premiado no Salão de Humor de Piracicaba, também ele saúda a ampliação do espaço brasileiro nas páginas do Caderno B.
Bruno Liberati, cujo trabalho de ilustrador os leitores do JORNAL DO BRASIL já conhecem desde 1976, é paulista, tem 32 anos e já foi boy, técnico químico e "quase sociólogo" antes de se transformar em desenhlsta profissional. Avis Rara, sua tira que estreia amanhã, é definida por ele como uma galeria de bichos que tem de psicografar, todos os dias. Seu clima: a "tragédia brasiliensis".
Recentemente, numa noite tenebrosa de Botafogo, um bicho frenético baixou em minha prancheta, disse que era enviado de Glauber Rocha, que se chamava Paulo Valentino e que um dia almejou ser um artista de novela. Tinha muita coisa a dizer. O bicho foi assumindo a forma de um estranho pássaro e trouxe com ele uma lesma metida a besta chamada Ledesma, um atrevido passarinho de nome Arrepio, um hipopótamo argentino exilado em Copacabana, bichos que são inocentes e livres para dizer o que lhes dá na veneta. Inclusive: "como é duro ser brasileiro!"
Cláudio Paiva, 25 anos no mês que vem, niteroiense, com experiência em jornais, revistas e televisão (produziu e participou da manipulação de bonecos de espuma), prêmios em salões de humor em Curitiba, Teresina, Piracicaba, menção honrosa no México, presença em mostra na França, é o criador de Zarzan, que ele diz ser "uma tremenda curtição pessoal". A história, segundo Cláudio, mostra muito de sua descrença, do seu medo e desconfiança em relação ao Brasil.
É uma história essencialmente anárquica. O herói, Zarzan, será apresentado ao leitor na tira de amanhã: "Filho de um camponês do Projeto Jari com uma estagiária do Projeto Rondon." Depois de um ataque de jagunços ao grupo de posseiros que dividiam as terras de seu pais, Zarzan se vê sozinho em plena selva e ali começa a viver suas aventuras.
Cecília Vicente de Azevedo Alves Pinto, Ciça, paulista que passou a adolescência no Rio - e que se casou com o artista gráfico Zélio depois de viver algum tempo na França - dedica-se às histórias em quadrinhos há mais de 15 anos. É ela a criadora de O Pato: Ao pensar nas situações e personagens em meus quadrinhos, procuro retratar o humor do cotidiano urbano, seja no plano familiar, seja no plano político - diz ela. Isso soa sério demais, mas é no cotidiano que está a graça e a desgraça da qual a gente tem de rir e sobre a qual meditamos. O Pato: que sai na Folha de S. Paulo há
anos, será o seu veículo nesta tentativa de incluir o humor e o desenho dentro da realidade brasileira.
É o mesmo caso de Luscar, ou Luis Carlos dos Santos, com seu Doutor Baixada. Paulista, 34 anos, autodidata, Luscar fala de seu personagem: Nasceu por acaso na época do Mão Branca. Um amigo, que editava o Jornal da Baixada, pediu-me para fazer a capa. Na mesma época a revista Mad encomendou-me a criação de um personagem que aproveitasse a onda do Mão Branca. É o Dr. Baixada. O nome é genérico, no sentido de baixo, baixeza, e não está necessariamente vinculado à Baixada Fluminense.
A noite, seus personagens, os garçons, os músicos, os bêbados, os boêmios, eis o tema de "As Mil e Uma Noites", a tira foi criada por Paulo Caruso, outra estréia de amanhã. Paulista, 32 anos. formado em Arquitetura e Urbanismo, colaboração nos principais jornais e revistas do país, presença em vários salões de humor. Caruso já publicou um álbum de sátiras políticas em quadrinhos, de parceria com Alex Solnik. Este seu novo trabalho segue a mesma linha, embora com outros personagens e outro ambiente.
Davilson, pernambucano de São Laurenço da Mata, 32 anos, foi apresentado por Ziraldo a Fortuna, em 1968, e desde então, a partir do suplemento humorístico dominical que o Correio da Manhã publicava, dedicou-se ao cartum. Quanto aos quadrinhos, diz que "a grande vitória" deste gênero, no Brasil, é esta iniciativa do JORNAL DO BRASIL, uma vez que as tiras nacionais tem uma história marcada por tentativas frustradas de ganhar espaço na imprensa. A Turma do Pé Sujo é a sua historieta: Ela conta o dia-a-dia de um grupo de super-heróis brasileiros, cariocas principalmente, frequentadores de um botequim típico.
Maurício de Sousa é o mais conhecido de todos os desenhistas brasileiros de histórias em quadrinhos, inclusive no exterior. Nascido em Santa Isabel, interior de São Paulo. Maurício sempre procurou imprimir às suas histórias uma filosofia: divertir, entreter e na medida do possíel, transmitir às crianças (e aos adultos) mensagens de otimismo. Seus personagens "não são neuróticos", mas gente que trata de resolver os próprios problemas.
Muitos se inspiram em pessoas reais (Mônica e Magali, por exemplo, seriam suas filhas; Cascão e Cebolinha, colegas de infância e Horácio, o próprio Mauricio). Cebolinha á a história que representam o desenhista no espaco nacional dos quadrinhos do JORNAL DO BRASIL. O que se pretende é exportar o espírito alegre e comunicativo do brasileiro para todo o mundo.
Hubert, 22 anos e Agner, 23, trabalharão em dupla nas histórias a que deram o título de Lar Doce Lar. Nelas, um retrato da familia brasileira média. Ou, como explica Agner: Uma história que procura retratar as peripécias da familia de classe média urbana brasileira. Cada personagem é uma projeção dos nossos próprios familiares, todos estereotipados.
Agner publica desenhos desde os 11 anos de idade. Aos 15, já ganhava um concurso de monografias promovido pela Telebras, apresentando seu trabalho em forma de quadrinhos. Hubert fala menos de si mesmo: Minha infância e adolescência só interessam a mim e ao meu analista, assim que arrumar uma analista que pague para me analisar. Mas seu objetivo, nesta história, ele não esconde: Vamos retratar a família de classe média brasileira situando-a no contexto geral do sistema capitalista. Através de críticas, às vezes corrosivas, pretendemos promover uma ampla reestruturação moral de nossa socieade.
Veríssimo, Nani, Liberati, Cláudio Paiva, Ciça, Luscar, Caruso, Davílson, Maurício de Sousa, Hubert e Agner, juntos, a partir de amanhã, estarão mostrando suas histórias e seus personagens, ao lado das tiras estrangeiras que o JORNAL DO BRASIL já vinha publicando (e mais quatro novas, ou seja, Frank e Ernest, de Bob Thaves; Zezé e Cia, de Mort Walker e Dik Browne; Miss Peach, de Mell Lazarus e Dona Agatha, de Bill Hoest).
*Agradecimentos ao amigo João Antonio Buhrer pelo envio da matéria.
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